Capítulo 47


      De volta a montanha corta-vento eu precisei de um bom banho, porém, a sensação de estar com a faca cravada na versão criança de mim não saía por nada, tentei de tudo, mas nada funcionava. Daruucad estava tão silencioso que às vezes cheguei a pensar que ele estivesse morto, eu não sabia o que havia acontecido no templo, mas ele tinha desmoronado por completo e o fato de eu acordar com o diadema nas mãos não ajudou muita coisa.
        Sentada na minha cama, fiquei observando o diadema, todas as pedras haviam sido reduzidas a pó colorido, e no fundo eu me sentia igual antes, não havia nenhum resquício que me fazia saber que o poder do diadema estava dentro de mim. A única coisa que eu precisava era saber como colocar a proteção em cima de todos as pessoas na montanha.
       Ao lado do diadema, estava Cadaadis, a lâmina tormento, eu não conseguia parar de pensar em Joel toda vez que olhava para ela, eu torcia para que ele estivesse no palácio do céu, descansando ao lado de Gingar, Unsan e Maalavan.
      Maldita profecia...
      Alguém abriu a porta de pedra que estava entreaberta, Amanda apareceu na entrada com as mãos juntas na frente do corpo, olhei para ela e assenei positivamente. Lentamente a moça fechou a porta por dentro e caminhou até a minha cama, sentando na beirada de frente para mim. Eu permaneci em silêncio.
       — Tudo bem? — ela perguntou pegando o diadema, encarando o artefato.
       — Mais ou menos... — respondi.
       — Ficou bastante tempo fora, onde esteve?
       — Fui atrás disso aí — apontei para o diadema nas mãos dela —, é o olho de Riviera, o artefato sagrado que eu precisava para fazer com que todos vocês tenham imunidade contra a praga. 
        — Oh... — ela pareceu surpresa por estar segurando um artefato sagrado que antes tinha muito poder —, então... o poder que estava aqui dentro, agora está em você?
        — Deve estar.
        — Eu... sinto muito pelo que houve com...
        — Por favor não toque neste assunto... é dolorido demais — interrompi.
        — Desculpe...
       Havia um vazio grande em meu coração, como se todas as minhas emoções tivessem sido drenadas, eu não sentia nada além de tristeza. Amanda ficou em silêncio, talvez pelas minhas respostas frias, a verdade era que eu não sabia o que responder a ela.
        Além disso, haveria uma grande batalha e não demoraria ter início, o imperador precisava sentir o gosto amargo da derrota, e tirar dele todo o Norte seria uma ótima demonstração só que é perder. Mesmo que fosse arriscado demais.
       Eu precisava atacar Zufreid e Vurian, dois grandes reinos do Norte e ao mesmo tempo, a margem de erro era muito grande e não tinha certeza se conseguiríamos vencer, entretanto, eu sabia que deveria matar o homem que o imperador mandou para comandar este lado da muralha.
       — Conheci o Uriah, é uma gracinha — Amanda disse, tentando quebrar o clima ruim.
       — Ele é um bom menino, sabe atirar flechas como ninguém.
       — Você é como uma mãe para ele, foi Uriah quem disse.
       — Eu apenas prometi que não o abandonaria — continuei fitando a lâmina da Cadaadis —, a família dele foi vítima da batalha que destruiu Kyvar, quando o imperador deixou o povo na mão do destino e tomou Millandus — havia um tom de ódio em minha voz.
        — Um dia o imperador vai cair, e todo esse sofrimento terá um fim — Amanda repousou sua mão por cima da minha.
       Olhei para ela e assenti devagar. Eu acreditava em suas palavras, mas o que me preocupava era o que perderia para vencer o imperador, já havia perdido tantas coisas apenas para se cumprir parte da profecia, mal conseguia imaginar o que mais eu poderia perder.
        Amanda se levantou e saiu, deixando-me com meus pensamentos e indagações internas, deitei e fitei o teto, tentando descobrir o que fazer para lançar a proteção contra a praga nas pessoas que tirei de Millandus, talvez uma das Mestra-Sacerdotisas pudessem me ajudar, ou não.
        Virei para o lado e fechei os olhos, estava cansada e dolorida, precisava dormir pelo menos um pouco, nem me recordava quando fora a última vez que dormi tranquilamente, talvez há quase três anos, quando eu era uma jovem que sonhava em entrar para a guarda real de Millandus.
       Devagar o sono começou a me tocar e lentamente fui imersa em uma escuridão reconfortante enquanto meu corpo se colocava em hibernação.


Acordei horas depois, a porta do meu quarto estava aberta, eu havia esquecido de fechar, mas agora já não precisava. Me levantei e vesti um casaco de pele de Halab, depois saí do quarto e segui para o topo da montanha corta-vento, onde saboreei o ar gelado da noite.
       Amanda estava encostada no parapeito, usando o traje de proteção e a máscara filtradora. Minha cabeça estava mais leve e vazia, talvez por ter descansado um pouco. Aproximei-me dela e me coloquei ao seu lado, ela estava fitando o céu estrelado em silêncio.
        No fundo eu estava arrependida de ter tratado ela com frieza mais cedo, porém, não fora culpa minha, muitas coisas haviam acontecido e era impossível não me sentir afetada por tudo. Devagar repousei minha mão na dela, para informá-la de que já estava melhor.  
        Seus olhos azuis fitaram os meus e em seguida voltaram para o céu, ela suspirou e eu não sabia se fora de alívio ou tristeza, afinal, Joel também era amigo dela. Desconfortável, olhei para o horizonte escuro do lado Norte, aquela vista no qual eu já me acostumara tanto.
       — Desculpe por mais cedo... minha cabeça estava cheia demais — falei baixinho. 
       — Tudo bem, eu entendo, Joel era uma pessoa muito importante para nós.
       — Olha... eu sei que você está sofrendo também, fui egoísta em pensar apenas no que eu sentia...
       — Eu acredito que você dentre todos nós, é a pessoa que mais esteve com a cabeça no lugar, então você tem o direito de ficar um pouco recolhida caso precise — sua voz estava abafada pela máscara, mas eu podia ouvir a tristeza em seu tom de voz.  
        — Preciso ver o Marcus... ele já respondeu alguma coisa?
        — Não... parece estar desligado do mundo, não diz nada, nem tem reflexos.
        — Irei vê-lo mais tarde.
        — Eu procurei alguma coisa na biblioteca sobre o que você estava procurando, achei isto — Amanda tirou um papel do seu bolso e me entregou.
       Abri o papel dobrado e li o que estava escrito, eram palavras na língua antiga que eu nunca havia visto antes, talvez nem eram na língua antiga. Parecia ser um feitiço para ser recitado, e de acordo com a descrição, precisava de uma grande fonte de poder para ser realizado. Assim que olhei todas as palavras, eu dobrei o papel e o guardei no bolso.
       — Vou tentar depois — disse encostando no parapeito.
       — E se essa proteção não funcionar? Eu posso acabar infectada pela praga.   
       — Temos uma mistura capaz de anular o vírus, não se preocupe, a praga é um perigo para quem está perdido no mundo afora, sem abrigo ou proteção.
       — É estranho ver essa povo te chamar de Kristallrosa, você é um tipo de deus para eles?
       — Estou mais para desgraça... desde que me juntei a esse povo, quatro pessoas importantes morreram, fora alguns caçadores.
       — Você não é uma desgraça — discordou ela.
       — Todas as pessoas que tiveram contato comigo, ou estão mortas, ou quase.
       — Você não fez nada disso, foi o imperador... essa culpa que você sente, não é boa, nada foi sua culpa.
       — Eu estou louca para me livrar dessa maldita profecia... ela já tirou muita coisa de mim.
       — Ela só tirará algo de você, se permitir que aconteça.
       — Só queria paz...
       — Teremos, acredite.
      Encarei Amanda, chegava a ser incrível como ela era tão otimista em relação a tudo, eu tinha medo de que um dia não existisse mais otimismo nela, era a única coisa que me permitia nunca desistir, pensar em como Amanda sempre acreditava que tudo ficaria bem.
       Meu corpo entrou em alerta quando um caçador surgiu da porta, ele parecia estranho, meio dormindo. Eu não sabia o porque meu corpo estava alerta, e apenas me virei na direção dele. Seus movimentos eram estranhos, como se fosse uma marionete, mas imaginei que estivesse apenas cansado.
      Me aproximei dele devagar, mesmo com Amanda segurando meu braço para impedir que eu fosse. Toquei no ombro do caçador e ergui sua cabeça, seus olhos estavam escuros na parte branca e seu rosto tinha veias saltadas.
       O caçador me segurou de repente e pegou algo dentro do manto, assustada tentei escapar, estendendo a mão para que Amanda não se aproximasse. Ele tirou uma bolsa explosiva do bolso, um pacote cheio de pólvora e enxofre que acendem com um pedaço de corda.
        Empurrei o caçador com força e corri na direção de Amanda, jogando-a para o outro lado do parapeito. Assim que o homem caiu, o saco em suas mãos explodiu, acendendo outros que possivelmente estavam em seus bolsos. O estrondo da explosão pôde ser sentido e ouvido por toda a caverna, enquanto eu e Amanda suspiramos aliviadas, fitando a fumaça negra que subia aos céus.
      Fora uma armadilha, aquele homem me mataria se eu não o tivesse empurrado.


— Eu quase fui morta! — gritei na sala de reuniões da montanha —, alguém aqui dentro está tendo contato expresso com o lado de fora, e eu exijo que façam algo.
        Yara me encarou em silêncio, estávamos rodeadas de Mestra-Sacerdotisas, sendo assim, todas deviam concordar em qualquer ideia que fosse proposta. Eu queria que fizessem uma varredura completa na montanha toda, mas de acordo com uma das Mestra-Sacerdotisas levantaria muitas suspeitas.
       — Não podemos fazer muita coisa, Rose, são quase cinco mil pessoas vivendo aqui dentro, como quer que façamos uma varredura neste lugar? — rebateu Yara.
       — Acho que você não entendeu a gravidade da coisa... fizeram um atentado contra a minha vida! E não é só isso, minha namorada estava comigo, podíamos morrer, nós duas — reclamei.
       — Qual é a sua proposta? — perguntou uma das Mestra-Sacerdotisas com sua voz calma.
       — Façamos uma varredura e procuremos por materiais explosivos, levantaremos uma investigação no quarto do homem morto e tentamos descobrir quem passou o equipamento para ele — me recostei na cadeira, respirando fundo para recobrar a calma —, essa é minha proposta.
       — Entende os riscos de uma operação deste jeito, não é? As pessoas farão perguntas, irão querer saber o motivo de terem suas coisas reviradas — outra Mestra-Sacerdotisa disse —, o que fará em relação a isso? Se dissermos a verdade o possível traidor saberá e vai se esconder.
       — Vamos realizar essa varredura de modo silencioso e discreto — respondi —, primeiro vamos peneirar as pessoas, levantar os suspeitos e manter os olhos neles.
       — E se descobrirem?
       — Então vamos fechar a montanha e todas as saídas, esse traidor tem que aparecer.
       — Se algo sair do controle você resolverá, esta é a condição para eu dar meu voto — impôs uma terceira Mestra-Sacerdotisa.
       — Concordo.
       Ela assentiu e levantou a mão direita, todas as outras concordaram e levantaram suas mão logo em seguida. Me levantei e saí da sala, dei as instruções para o novo comandante dos caçadores, que saiu apressadamente para organizar a operação.
       Dali, caminhei até a enfermaria e entrei no quarto em que Marcus estava sendo cuidado, ele estava sentado em uma cadeira, olhando para o lado de fora por uma fenda na parede da montanha. Me aproximei devagar e sentei na poltrona ao lado, seus braços estavam enfaixados e felizmente já tinham sido colocados no lugar.
       Seus olhos estavam tão vazios que a sensação era de estar observando um cadáver, engoli o bolo que se acumulava em minha garganta e toquei em seu ombro devagar, a única reação que ele teve foi suspirar, talvez notando o meu toque suave. Lágrimas brotaram do canto dos seus olhos e escorreram pelo seu rosto.
       — Oh meu amigo... você está seguro agora... — levantei e o abracei de leve —, tirei você de lá, está tudo bem agora...
       Escutei passos irregulares atrás de nós e saquei a Cadaadis rapidamente, já em alerta, eu não podia esperar que fosse atacada novamente. Virei apontando a adaga para a porta e vi Callias parado na entrada de braços erguidos para mostrar que estava desarmado.
        — Você me assustou — girei a Cadaadis e guardei de volta na bainha em minha cintura —, o que quer?
        — Não tive oportunidade de falar com você depois que chegamos aqui — ele baixou as mãos —, posso me aproximar?
        — Claro — endireitei meu corpo.
      Callias caminhou até perto de nós, passou por mim e tocou de leve na cabeça de Marcus, fora um toque carinhoso, como se ele fosse seu próprio filho.  
       — Este rapaz foi muito corajoso... protegeu Samuel e o permitiu escapar, então acabou assim... — Callias olhou para mim —, muito obrigado pelo que fez.
       — Eu não podia deixar que sofressem o que eu sofri nas mãos daqueles homem — sentei na poltrona e Callias sentou na outra.
       — Ouvi dizer que foi atacada, parece que há um traidor na montanha? Os soldados estavam dizendo isso agora pouco.
      — Onde quer chegar com isso?
      — Vim oferecer minha ajuda, posso agir como agente duplo e descobrir quem é o traidor e todos os envolvidos.
      — Olha Callias, vou ser sincera... a situação é complicada, estamos perto de uma guerra, e precisarei dos seus poderes na batalha.
       — Eu sei disso, por isso Samuel e eu vamos trabalhar juntos, assim quando acontecer a guerra podemos ajudar também. Eu não vou aceitar uma resposta negativa.
       — Certo... se insiste tanto, pode ajudar então.
       — Preciso contar algo sobre os Rosário....
       — Eu já sei, não se preocupe, eles estão do lado do imperador, provavelmente são os estrategistas dele.
       — Foram eles que agilizaram aquele ataque a Millandus, o rei não quis me ouvir quando eu o alertei.
       — Preciso conversar com ele depois.
        Satisfeito, Callias se levantou e estendeu a mão para mim, mesmo relutante apertei, era estranho ver os Azarir como aliados, mesmo depois do que Samuel fizera tempos atrás.
       Depois de ficar mais alguns minutos com Marcus, eu caminhei até a biblioteca da montanha, precisava estudar aquelas palavras do papel que Amanda me entregara. Já era tarde da noite e o movimento nos corredores estava quase nulo, nunca ficara tão cansada quanto nos últimos dias.
       De repente escutei a porta se fechando enquanto procurava um dicionário da língua antiga. Segurei o cabo da Cadaadis embainhada e olhei para a entrada, a iluminação era baixa naquele ponto da biblioteca, mas havia alguém ali parado.
       — Você é realmente muito inteligente — uma voz masculina ecoou na minha cabeça —, mas nunca irá vencer o imperador.
       A pessoa se aproximou mais da tocha e me assustei quando vi aquele rosto tão familiar. Atônita, recuei alguns passos e até esbarrei na mesinha.
       — Edward... — foi a única coisa que consegui dizer.

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