Capítulo 44


      Daruucad estava inquieto, se movendo no mundo alternativo de modo nervoso. Por mais que eu tentasse contar, perdia a conta depois do vinte. Só sabia que eram muitos, olhei de relance para Amanda, que se movia lentamente procurando algo para se defender.
       Deixe-me sair! Eu posso ajudar! Gritava Daruucad em minha mente. Eu estava nervosa pela primeira vez, e o fato de não saber a quantidade exata de soldados contribuía para isso. Olhei ao redor, haviam homens em cima das casas, nas varandas, em todos os lugares possíveis, aquele padrão me fazia lembrar dos Rosário.
       Eu tinha que pensar, precisava bolar um meio de escapar dali. Daruucad continuava pedindo para sair, mas não era viável, chamaria muita atenção e o imperador poderia ficar sabendo sobre mim. Amanda se armou com uma espada curta e Suzana se afastou da porta.
        Consegue limitar a visão deles? Falei em pensamento para meu dragão e obtive a confirmação quase que instantaneamente. Havia apenas uma estratégia viável, limitar a visão deles e escapar bem debaixo dos seus narizes. Respirei fundo e fechei a porta rapidamente, escutando as flechas cravarem na madeira, algumas delas atravessavam o vidro das janelas, mas não tinham como nos acertar.
        Apontei minha palma para o chão e Daruucad surgiu, cuspindo uma névoa branca, semelhante a vapor. Abri a porta espalhando a névoa por entre os homens e permiti que o interior da casa também ficasse cheio dela. Eu não conseguia ver nada, assim como os soldados do lado de fora, que continuavam disparando flechas contra a casa.
       De repente minha visão mudou, e eu comecei a ver através da névoa como se ela não existisse. Sentia como se Daruucad tivesse se unido ao meu ser, e me desse a capacidade de ver o que seus olhos viam. A sensação era incrível.
       Algo começou a queimar na minha garganta, e quando abri a boca, uma rajada de fogo vivo saiu atingindo os soldados cegos pela névoa branca. Quando acabou eu não pensei duas vezes em correr, agarrei o braço de Amanda e Suzana e saí pela porta dos fundos.
       Do lado de fora havia muita névoa, como se ela espalhasse mais e mais por todas as redondezas. Minha visão continuava atribuída a dele, que me guiava pelos becos cobertos pela névoa. Daruucad estava nervoso, eu sentia isso.
        Paramos a uma distância segura, eu conseguia ver a nuvem branca por cima das casas, se aquilo não chamasse a atenção do imperador, significava que Daruucad podia fazer muito mais coisas do que imaginei.
        Amanda olhou para Daruucad tentando obter mais fôlego, tínhamos corrido bastante para nos afastar. Minha visão voltou ao normal e senti que ele havia parado de compartilhar sua visão comigo.
        — Desde quando você tem um dragão? — perguntou Amanda respirando fundo.
        — Há poucos dias — respondi olhando para ela.
        Por algum motivo eu não estava cansada como Amanda e Suzana, talvez Daruucad compartilhara comigo seu vigor, pois ele também não parecia cansado, era como se nem tivesse corrido.
       — Porque não me contou?!
       — Eu pretendia fazer uma surpresa, mas não deu tempo — corri com os olhos pelo beco —, estamos expostos demais, não dá para esperar, temos que salvar nossos amigos e cair fora, ficar aqui se tornou arriscado.
       — E os guardas? — perguntou Suzana se colocando a minha frente —, você prometeu que não iria matar ninguém.
       — Não vou.
       Olhei para Daruucad. O dragão estava do tamanho de um gato. Ei, chamei por nossa conexão mental, ele ergueu a cabeça para me olhar. O que quer? Perguntou.
        Preciso que você faça aquilo que te pedi, a distração. Daruucad me encarou, incomodado pela mudança no plano, um que passei tanto tempo montando e pensando.
       Ele se levantou e levantou voo, crescendo enquanto desaparecia entre as nuvens. Chequei o quanto eu estava armada para realizar o resgate, então comecei a caminhar na direção do cemitério.
       Amanda e Suzana me seguiram de perto, em silêncio e de cabeça baixa. Os soldados estavam agitados, não era para menos, eles haviam chegado perto de capturar a mim.
       Subi a rua devagar, tentando não parecer apressada demais, ao mesmo tempo que tentava ao máximo evitar os soldados. O sol estava perto de se pôr.
        Os portões do cemitério estavam abertos e entramos com facilidade. As lápides seguiam até se perderem de vista, mas meu interesse era na capela, onde encontraria a entrada secreta do castelo.
       O único som naquele lugar vinha do vento e dos nossos passos, aquilo me incomodava, o silêncio trazia uma sensação de estarmos sendo vigiados e seguidos.
       Seguimos para a capela, uma construção antiga, com duas torres de sino e um ar melancólico. As portas estavam gastas pela idade, apesar de serem feitas com madeira de carvalho, não resistiram o tempo.
        Andamos ao redor da construção para descartar qualquer armadilha, haviam tochas acesas, mas não me importei, afinal, sempre estiveram ali, vez ou outra um sacerdote aparecia para acende-las.
        Voltamos para as portas e ficamos encarando a madeira gasta por alguns minutos até reunirmos coragem o suficiente. Segurei a maçaneta, estava fria e fez meus braços se arrepiarem. Engoli em seco e empurrei a porta.
        Assim que coloquei a cabeça para dentro, uma faca foi arremessada contra mim e cravou bem ao lado do meu rosto. Saquei minha adaga rapidamente e rebati a segunda faca. Entrei apressadamente e parei antes do próximo movimento.
       No meio da capela havia um rapaz, aparentemente da mesma idade que eu. Nunca confundiria aqueles cabelos castanhos e expressão de desprezo com qualquel pessoa. Ele segurava uma espada curta apontada para mim.
       — Samuel, o que está fazendo? Larga isso — Amanda disse atrás de mim.
       — Rosemary... eu sabia que você não estava morta — disse ele, abaixando a espada.
       — Guarda o sentimentalismo para depois, preciso entrar no castelo pela passagem — dei alguns passos.
       — O que vai fazer? — Samuel se colocou na minha frente —, o imperador...
       — Eu sei, estive lá hoje, vou resgatar o pessoal, saia da frente.
       — É perigoso!
       — Sei disso também, já tenho tudo muito bem orquestrado.
       — Vou com você.
       — Preciso que fique aqui, alguém que sabe lutar tem que proteger a passagem.
       — Meus pais estão lá!
       — Eu sei! Porque acha que quero que você fique? Sei como é ficar longe de alguém importante, dentro daquelas masmorras não é lugar para matar saudade.
       Notei que havia uma cicatriz no seu rosto, seguindo da sobrancelha até o lábio inferior, Samuel já havia tentado tirar eles da masmorra, percebi.
       — Não se preocupe, trarei seus pais de volta.
       Ele abriu um alçapão bem atrás do altar de apresentação, usado para deixar o caixão do ente querido morto, uma espécie de despedida antes de enterrar. Olhei para Samuel e assenei positivamente, em seguida pulei para dentro.
        Esperei Amanda pular, trazendo uma tocha consigo, o alçapão se fechou e começamos a caminhar pela passagem, correr faria barulho, e talvez poderia ser ouvido por alguém do lado de fora.
       A passagem era um corredor escuro cheio de teias de aranha, além disso, tinha cheiro de pó e contive a vontade de espirrar duas vezes. Caminhar naquele lugar era estranho, parecia que as paredes nos apertavam a cada passo.
       Senti a diferença no ar conforme nos aproximavamos mais do interior do castelo. Aquela passagem fora milimetricamente calculada, talvez até o cemitério tenha sido construído para se encaixar com o caminho secreto, pois tinham o mesmo nível.
       Chegamos no fim da passagem secreta e Amanda deixou a tocha em um suporte na parede. Encostei meu ouvido na porta e esperei por algum som que indicasse a presença de alguém por perto.
        Escutei passos indo em direção as escadas do andar de cima e depois de cinco minutos eu abri a portinhola da passagem. Algumas lâmpadas estavam ligadas, mas o salão descendo as escadas estava completamente escuro.
        Olhei para Amanda e saí devagar, fechando a portinhola depois que ela saiu, caminhei agachada até a outra passagem e hesitei apertar o botão escondido, o som das engrenagens provavelmente ecoariam por todo o castelo.  
        De repente ouvi um estrondo ao longe e sabia que era Daruucad atendendo as minhas necessidades, barulho para cobrir outro barulho. Apertei o botão e as engrenagens fizeram seu trabalho, abrindo a passagem.
       Eu não sabia como Daruucad havia imitado um trovão, mas fora genial. Percorremos a segunda passagem e subimos a rampa, mas quando estávamos prestes a abrir a portinhola atrás do quadro na sala de reuniões, escutei alguém mexendo nos papéis.
       Abri o suficiente para olhar e vi o imperador diante da mesa, estudando os mapas e estratégias. Eu não estava contando com aquela possibilidade, Amanda sentou encostada na parede e suspirou baixinho.
        — Vamos ter que esperar — sussurrei sentando do outro lado, quase de frente para ela.
       Minha preocupação era acabar fazendo barulho, pois a sala estava em silêncio, qualquer ruído chamaria a atenção do imperador, e eu não tinha certeza se conseguiria o derrotar. Conheci parte do seu poder, e mesmo aquela parcela havia sido forte o suficiente para quase me fazer clamar por misericórdia.
        — Ainda está brava comigo? — perguntei baixinho.
        — Fiquei nervosa por você não ter ouvido minha sugestão, mas agora estou bem — respondeu ela mantendo a voz baixinha.
       Assenti, não queria pensar no que aconteceria quando eu precisasse tomar uma decisão homicida, Amanda não iria gostar de saber que inocentes poderiam morrer em uma guerra, então, decidi que contaria.
       — Sabe... uma guerra pode acontecer, tem essa noção, certo?
      — Onde quer chegar?
      — Vai haver momentos em que terei que tomar decisões... essas decisões podem causar a morte de muitos inocentes...
      — Estarei ao seu lado para mostrar um escape — disse ela.
       Abaixei a cabeça, no fundo eu sabia que certas situações não tinham escape. Como a explosão daquela carga de pólvora, Amanda não sabia, mas quatro casas seriam atingidas, e a taxa de morte era de cinquenta por cento, duas famílias poderiam morrer e duas ficariam feridas.   
        Fechei os olhos e escutei a explosão distante da primeira carga de pólvora. Uma lágrima correu pela minha bochecha e caiu na minha mão. Àquela altura, as pessoas que se passariam por rebeldes provavelmente já estavam por perto.  
       A segunda explosão veio depois de dois minutos, e a terceira após cinco minutos. Ouvi a porta da sala se escancarando e um soldado dizendo alto:
        — Imperador! Está uma confusão lá fora, precisamos de você.
       Os dois saíram da sala e fiquei confusa com a palavra "confusão". Abri a potinhola e saímos detrás do quadro, caminhando rapidamente para fora. Olhei pela janela e vi as ruas cheias de pessoas vestidas de branco.  
        Gingar estava diante delas, as liderando. Meu coração falhou, eu não estava sabendo daquele plano, era suicida, o imperador mataria os líderes da revolta. Fiquei desesperada para ir até lá e ajudar, mas Amanda me impediu de voltar.
        — Rose, vamos! Você tem que salvar os nossos amigos.
        — Aquele homem é meu amigo! Ele vai morrer se eu não fazer nada!
        — Coloque a cabeça no lugar, precisamos ter calma.
        A encarei, ouvindo uma quarta explosão, dessa vez mais perto, iluminando o corredor. Amanda estava chorando, talvez também quisesse voltar e ajudar aquelas pessoas, mas haviam prioridades.
        Respirei fundo e assenti, dando lugar ao ódio. Corremos pelo corredor e dobramos a direita, onde haviam dois soldados protegendo a entrada das masmorras. Saquei minha adaga e os matei antes que pudessem sequer notar nossa movimentação.
        Amanda abriu a porta de ferro maciço e descemos uma longa escada até a masmorra. Haviam jaulas de cada lado, peguei um molho de chaves e entreguei para Amanda, que começou as abrir.
        — Rose! Você veio! — gritou o rei.
       Diana e Callias me observaram sem acreditar que eu estava ali. Libertei os Bellarim e Amanda abriu a  cela dos Infeor.  Caminhei para o fundo da masmorra e vi um corpo sentando com as costas na parede.
       Seus braços estavam virados a ângulos estranhos. Me aproximei devagar, sua cabeça estava baixa e eu não conseguia ver seu rosto, mas algo em meu corpo deixava-me alerta.
       Quando percebi quem estava ali, meu coração deu um salto e um misto de sentimentos me deixava sem reação, a única coisa que consegui fazer foi gritar seu nome.
       — Marcus!
        Agachei-me diante dele e ergui seu rosto, estava destruído. Havia sangue escorrendo do nariz, lábio inferior cortado e um olho roxo. Meu Deus, meu Deus. Murmurava enquanto fazia alguma coisa para ajudar.
         Ouvimos barulho nas escadas e fiquei alerta, tentando conciliar entre segurar Marcus ou minha adaga. O pai do meu amigo me ajudou a manter seu filho de pé, até que de repente Joel apareceu na escada.
        — Rose, vamos, situação está complicada lá fora — respirei aliviada e ajudei o pai de Marcus a levar seu filho para fora daquelas masmorras.
         Subimos as escadas devagar, enquanto Joel e Callias tomavta a frente do grupo, garantindo que não fôssemos interceptados. Marcus gemia conforme andávamos, e eu sabia que a dor era insuportável, passei pela mesma coisa.
        Descemos as escadas em caracol e Amanda abriu a passagem secreta. Corremos por ela enquanto Joel a bloqueava e chegamos ao fim do corredor, Samuel nos ajudou a tirar Marcus do buraco enquanto os outros subiam.
        Olhei para a entrada do cemitério e vi muitos soldados vindo em nossa direção. Assobiei alto e Daruucad surgiu do meio das nuvens, pousando no tamanho ideal para carregar todos nós. Suzana, Amanda, Diana, Ayla Infeor, Catarina Bellarim e as irmãzinhas gêmeas de Samuel subiram primeiro.
        Subi logo em seguida e puxei Marcus para cima com a ajuda de Ayla e Diana. Callias, Bronn Infeor, Isair Bellarim, Lincoln Bellarim e Samuel subiram depois, mas Joel ficou parado.
       — Vamos Joe! Não temos muito tempo — gritei estendendo a mão para ele.
        Joel me observou, depois olhou para os inimigos se aproximando, havia um sorriso estranho no seu rosto, e eu não gostava nada daquele sorriso.
       — Joel? Suba neste dragão agora mesmo! — gritei novamente, mas ele não se moveu.
       — Foi ótimo cuidar de você por tanto tempo... me lembrei de quando eu era pai — murmurou ele. Joel deu dois tapinhas em Daruucad e sorriu —, vá em paz.
        Daruucad começou a se mover, como se tivesse obedecido seu comando, mesmo eu dando a ordem para ele parar.
        — Joel! Suba no dragão! Suba! Joel! — comecei a gritar sem parar enquanto Daruucad começava a planar e alçar voo —, Não! Daruucad volte! Volte agora!
        O dragão não respondia meus comandos e eu comecei a ficar preocupada enquanto lágrimas desciam sem parar. Vi Joel entrar no meio daquele mar de soldados, lutando como se fosse sua última batalha. Seus movimentos eram graciosos e tão leves quanto uma pena, mas então, veio o primeiro golpe. Joel cambaleou e recebeu o segundo, depois o terceiro e ainda um quarto.
        — Não! Daruucad volta! Volta por favor! — mais lágrimas escorreram sem parar —, volta, volta Daruucad! Volta!
       Mas ele não me obedeceu. Meus olhos presenciaram a queda de Joel, enquanto os soldados se ajuntavam ao redor dele, terminando o serviço da maneira mais brutal possível. Do meio da multidão de homens o imperador surgiu, pisando na cabeça de Joel, seus olhos se viraram para mim, sua expressão era de ódio. Gritei muito, até minha voz falhar, mas Daruucad não voltou.
       Aquela dor, era a pior de todas, fazia com que tudo que sofri fosse apenas cócegas, comparado a tudo que senti, aquela dor era a mais cruel. Ver uma pessoa importante morrer sem que possa fazer nada.
       Amanda me abraçou e chorou comigo, enquanto Marcus não tinha nem consciência para entender o que estava acontecendo. Gritei, não de dor, mas de raiva e tristeza, raiva por não poder fazer nada e tristeza por Joel.
       E então lembrei de Gingar e Unsan, dois que provavelmente também estavam mortos. Gritei, gritei tanto que quase estourei minhas cordas vocais. Aquilo doía, era como se meu peito tivesse um buraco. Daruucad subiu mais nas nuvens e se camuflou, enquanto eu continuei gritando até dormir.

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