Capítulo 20

 
       Acordei e não vi Amanda em lugar algum. Me vesti e desci, vendo o sol do lado de fora iluminar o corredor, mesmo ali dentro, continuava muito frio.
       Quando cheguei ao último degrau escutei conversas na sala de jantar, seguido do som dos pratos e copos. Caminhei na direção do som e vi todos assentados na mesa, tomando café da manhã.
        O rei Arthur conversava alegremente com Farwell, Diana, Ameerah, Celeste Bellarim e Emma Infeor, conversavam com a esposa do rei, enquanto seus maridos batiam papo com os membros da corte real.
        Corri com os olhos pela mesa até encontrar uma cadeira vazia ao lado de Amanda, que estava rindo enquanto falava com o filho do rei. Fui até ela e me sentei em silêncio, pegando algumas torradas.
         — Bom dia — falei para ninguém em especial, mas não fui respondida.
       Tomei meu café amargamente, enquanto ouvia a conversa animada de Amanda ao meu lado, que sequer havia percebido minha presença.
        Depois que terminei, apenas me levantei e saí, voltando na direção das escadas, eu queria voltar para o quarto e me deitar, afinal, não tinha nada interessante para fazer naquele reino totalmente desconhecido.
         Enquanto subia as escadas, decidi explorar a casa. Segui à direita, olhando os números de cada porta, até chegar no fim, onde não tinha número.
         Abri a porta e encontrei uma enorme biblioteca. As cortinas estavam fechadas e a única iluminação vinha pela fresta delas. Caminhei para dentro e as abri, iluminando o cômodo completamente.
         Estantes e mais estantes se seguiam até se perderem de vista. Caminhei por entre elas, olhando os diversos títulos diferentes, alguns eu reconhecia, mas outros não.
          Um livro com capa verde me chamou a atenção. Nela havia um círculo grande, pelo que entendi no título, um homem estava disposto a dar uma volta no mundo todo em apenas oitenta dias.
         Cientificamente isso era impossível, como alguém seria capaz de dar uma volta no mundo em tão pouco tempo?
         Interessada, peguei o livro e me sentei em uma poltrona ali perto, onde a luz do dia clareava as páginas. Abri e comecei a ler.
        


Não sei quanto tempo havia passado, mas notei que a iluminação natural diminuía aos poucos. Eu estava quase terminando o livro, uma ficção interessante que me prendera na leitura a ponto de eu sequer ver o dia passar e a fome apertar meu estômago.
         Fechei o livro e o trouxe comigo enquanto saía da biblioteca e voltava pelo corredor até as escadas. Amanda estava sentada nos degraus com Ron ao seu lado, ambos rindo e conversando.
         Não sei o motivo de eu ter ficado tão irritada com aquilo, no café da manhã ela sequer havia percebido minha presença, e naquele momento não tinha ao menos me procurado.
         Apertei tanto minha mão contra a capa do livro, que a senti doer. Esqueci completamente da fome e segui para o quarto. Me segurei para não bater a porta com toda a minha força, mas nada ali era do meu reino, então o melhor a se fazer era segurar aquela vontade, como uma bomba prestes a explodir.
          Olhei pela janela, o dia não estava nem perto de terminar, mas o sol havia mudado seu curso e tinha atrapalhado minha leitura. No quarto, vesti a roupa que os Bellarim fizeram e procurei uma saída alternativa da casa.
         Por sorte, encontrei uma saída de emergência, para o caso dos moradores precisarem escapar do castelo em um ataque. Fiquei bastante curiosa para ver o que tinha nas torres, mas isso seria para outra hora, pois não aguentaria estar dentro do castelo naquele momento.
         Senti a neve nas minhas botas quando saí. Ajustei a máscara filtradora e comecei a caminhar, não sabia para onde, mas queria apenas sair do castelo por alguns minutos.
         Zufreid era um reino bonito, apesar do clima frio. As montanhas atrás do castelo serviam para impedir mais ar gelado, ou as pessoas morreriam pelo frio. Imaginei se alguma época do ano aquele lugar esquentava um pouco.
          As casas eram quase todas iguais, aqueles que tinham mais condições de terem residências melhores, às tinham. Não havia estalagens em lugar algum, e pensei se era por conta do frio, provavelmente ninguém visitava outros reinos neste lado da muralha.
         Subi uma encosta a direita e continuei seguindo a trilha até o topo, e quando cheguei, suspirei com a beleza da paisagem que eu via. Embora fosse um lugar quase completamente polar, ainda assim era muito lindo.
         No horizonte havia uma espécie de muralha, mas eram montanhas, com um caminho entre elas, antes disso, haviam pequenas dunas de neve, árvores congeladas, lagos e pensei ter visto movimento em terra.
         O sol iluminava o caminho pelas montanhas. Acima delas, era plano, que permitia uma unidade de arqueiros em cima se fosse o caso. Imaginei se ali fosse os portões que davam acesso aos outros reinos. Se aquela fosse toda a extensão do reino, Zufreid era quatro vezes maior que Millandus.
          Sentei na beira da montanha e fiquei ali, olhando a paisagem que me prendera. Olhei para a esquerda e vi que tinha um meio de descer para o outro lado, reforçando meu pensamento de que a passagem no horizonte era o fim de Zufreid.
          Aquele lugar transmitia paz, como se fosse outro mundo, um lugar de descanso, onde a alma se sentia profundamente tranquila. O motivo de Zufreid ser tão famosa estava diante de meus olhos, a única coisa que se podia ouvir ali, era o vento.
           Talvez Zufreid seja o reino mais silencioso que já estive. Rubria também era, mas tinha a ameaça dos Scors e Pritar, Liceo não era silenciosa, muitos diziam que era o reino mais barulhento, por conta das armadas e vendedores.
           Porém, Zufreid também era perigoso, as chances de sobrevivência caso se perdesse em campo aberto eram mínimas, pela falta de comida, abrigo, e materiais para fazer fogo, além disso, o frio mataria uma pessoa mais rápido que um veneno.
          Pensei em como Vurian seria, se era mais frio ou menos. Kyvar naquele momento não era um bom destino, afinal, os Pesadelos haviam tomado o reino. Comecei a torcer para que os habitantes de Vurian consigam conter os ataques deles.
          Nossos inimigos eram inteligentes, tomaram Kyvar pela força militar e a disposição dos dragões para ataques aéreos. Aquele reino era o único que continham aqueles animais.
         Começou a ficar mais frio, então me levantei e comecei a caminhar de volta. O vento ficou mais forte, como se o sol segurasse a maior parte dos malefícios do reino.
         Quando o último raio de sol desapareceu entre as montanhas, o vento ficou ainda mais poderoso, me obrigando a forçar o passo. Sem querer, pisei em falso dentro de uma pequena bifurcação e caí.
         Vi o topo se distanciando cada vez mais, e percebi que minha queda estava sendo para o lado errado da montanha. A neve conteve a maior parte do impacto, mas não impediu que tudo escurecesse.


Abri os olhos de relance e vi que estava sendo arrastada, mas logo apaguei novamente.
        Aconteceu uma segunda vez, e continuava sendo arrastada. Da terceira, estavam me carregando para algum lugar. Mas apaguei completamente logo em seguida.
        Quando finalmente acordei, estava em uma caverna iluminada por tochas e velas. A cama era de pedra, mas surpreendente não era desconfortável.
         Meus braços e pernas estavam livres, mas meu corpo estava tão pesado que parecia ter uma montanha enorme por cima de mim. Observei todo o ambiente, marcando as possíveis saídas e lugares que eu poderia usar ao meu favor.
         Porém, percebi que não estava com meu cinto de adagas, haviam retirado de mim. O fato de estar desarmada fazia meu estômago afundar e minha respiração perder o ritmo.
         Um homem alto de repente entrou na câmara de pedra, meu coração deu um salto e comecei a percorrer o lugar com os olhos, freneticamente, procurando meu cinto de adagas.
        — Não se preocupe — disse ele. Sua voz era tão grossa que parecia um trovão, passava uma onipotência como se eu estivesse diante de um deus —, suas armas estão seguras, aqui não é um lugar para te ferir.
        Fiquei em silêncio, ele usava roupas de pele para se esquentar. Sua pele era clara como a neve e, seus cabelos eram rasos. Seu corpo era de um combatente treinado para matar, senti isso quando ele entrou.
         — Onde estou? — perguntei.
         — Manak — respondeu ele de modo calmo, enquanto manipulava dois copos com um líquido estranho.
         — É um reino? Nunca ouvi falar de Manak.
         — Somos um povo, formados por pessoas que cresceram nas artes santas do sacerdócio.
         — Quem me trouxe para cá?
         — Nossos caçadores — ele ergueu o copo para perto da tocha —, teve sorte, morreria de frio lá fora, ou talvez infectada pela praga.
        Meu coração deu um salto.
        — Infectada?
        — Um dos primeiros sintomas da praga é a sensação do corpo pesado, por isso não consegue se mexer, além disso, suas pupilas estão dilatadas.
         O homem se aproximou de mim e ergueu minha cabeça, aproximando o copo dos meus lábios.
         — Beba isto, é melhor que engula tudo rapidamente, o gosto não é muito agradável.
         Assenti de leve e bebi. O gosto era pior do que imaginei, parecia maçãs podres com uma pitada de amargura. Ele rapidamente colocou uma pequena esfera na minha boca e mandou eu morder.
         Um gosto de ambrósia se espalhou na minha língua, contendo o gosto ruim da bebida estranha. O homem me deitou novamente e colocou o copo em uma mesa no canto da entrada.
        — Este lugar é cruel com pessoas normais como você, nós vivemos por aqui há muito tempo, sabemos lidar com a praga — continuou —, pelo seu corpo, deve ser do lado Sul.  
        — Como sabe disso?
        — Corpo pronto para combate, armas na cintura e roupas diferentes.
        — Entendi...
        De repente senti o peso do meu corpo diminuir, me permitindo mais liberdade de movimento.
        — Não se preocupe, a praga já foi eliminada do seu corpo — disse ele.
        — O que era aquilo?
        — Uma poção, feita com sangue de Halab.
        — O que é um Halab?
        — Criatura das Neves. Se esconde no gelo para abater suas presas, são grandes.
         Halab, nunca ouvi falar nesta criatura, o que me fazia pensar quais eram os perigos daquele lado da muralha, e se eram mais mortais que Rubria.
        — Onde me encontraram? — perguntei curiosa.
        — Território dos Halab, provavelmente sentiram o cheiro do seu sangue e estavam te levando para o abate, nossos caçadores a encontraram.
        — Qual seu nome?
        Ele me olhou.
        — Maalavan.
        — Obrigada Maalavan, por ter me salvado.
        — Mais tarde deve agradecer a Gingar, o caçador que convenceu a unidade a salvar você, não é a mim que deve agradecer.
        — Estou falando da bebida...
        — Isso é normal entre nós.
        Ele saiu me deixando sozinha. Onde quer que estava, era estranho, diferente. Nunca havia ouvido falar daquele povo, muito menos de Manak.
        Talvez ninguém os conhecesse.
        Fechei os olhos e pensei em Amanda, provavelmente não estava sentindo a minha falta, desde cedo tinha ficado ocupada conversando com Ron. Talvez tivesse enjoado de ficar apenas comigo o tempo todo.
         Pensei se ela estava preocupada comigo, não sabia quanto tempo fiquei apagada, mas se já tivesse amanhecido, Amanda provavelmente percebeu meu sumiço.
          Esqueci de perguntar ao Maalavan o tempo que eu ficaria sem forças para me levantar, pois mesmo que o peso tivesse sumido, ainda não sentia com clareza minhas pernas ou braços.
          Tentei procurar em minha mente alguma informação sobre um povo vivendo escondido no lado norte da muralha, talvez eu tenha lido em algum lugar e não me lembre.
          Entretanto, não lembrei de nada, apenas da queda ridícula que tive quando pisei naquela bifurcação. O vento não me dava bom equilíbrio. Xinguei aquela montanha com todo o meu arsenal.
          Depois de vários minutos, a bebida parecia me deixar cada vez mais com sono, como se fosse calmante. Não evitei de fechar os olhos, sentindo meu corpo vibrar.
          Imaginei se havia quebrado alguma coisa, pois meu corpo parecia tão fraco que sentia como se tivesse levado uma surra, ou uma rocha caído em cima de mim.
          O sono começou a se instalar em meu corpo, trazendo a tranquilidade e a calmaria e então, dormi profundamente, pensando uma última vez nos possiveis danos causados em meu corpo.
          
        
     

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