Capítulo 34


        O frio era cruel, eu estava apenas com uma camiseta e calça, a mesma roupa que usava por baixo do traje, que havia sido retirado de mim. Saí da costa e adentrei a floresta, de acordo com meus sentidos, devia estar nos arredores de Kyvar ainda, território dominado pelo império.
         Meu plano inicial era conseguir outro traje e atravessar o Norte até a muralha, descobrir como entrar, voltar para Millandus, me armar e depois retornar para Kyvar.  
         Mesmo que eu tentasse encontrar o dragão de asas brancas, seria impossível estando desarmada, e pegar meu cinto no castelo do imperador me parecia uma tarefa muito arriscada.
         O único problema, era conseguir encontrar um traje ali, não havia nada igual naquela parte do Norte. Mas então, percebi que eu não estava usando a máscara protetora, e que respirava o ar sem nenhum problema.
         Talvez meu corpo não reagisse mais à praga, e a infecção poderia se tornar ineficaz. Eu tinha que me localizar, saber o que havia nos arredores, que caminho seguir. Precisava de um lugar alto.
         Porém, da floresta minha visão era muito reduzida, era melhor passar por ela e encontrar um espaço com visibilidade mais ampla. Amaldiçoei o imperador, eu estava sem nada para me defender, muito menos me proteger do frio. 
           Se a noite chegasse logo, provavelmente acabaria doente por conta do frio, e como a árvore estava muito úmida, não era possível fazer uma fogueira, os galhos não queimariam.
           Sabendo disso, me apressei para sair daquela floresta, andando rapidamente, evitando levar muito tempo para atravessar obstáculos e avançar logo. O dia esquentou pouco conforme as horas passavam, e eu nem conseguia saber quais eram, afinal, passava poucos raios de sol, o que dificultava na criação do relógio.
         Enquanto avançava, escutei movimentação nas árvores acima de mim, fiquei parada em silêncio, até que vi algo bem pequeno pulando entre os galhos. A criaturinha desceu pelo trono e parou na minha frente, me observando com seus olhinhos pequenos.
         Parecia um coelho, mas bem menor, suas orelhas eram grandinhas, mas seu corpo pequeno como de um esquilo. Reconheci sua fisionomia, era um Hoppande Kanin. A criaturinha bastante curiosa se aproximou de mim e colocou uma batata no chão, como se me entregasse.
         Significava que não estava com medo. Agachei devagar e peguei a batata, mordi e deixei no chão novamente. Ele se aproximou, cheirou e empurrou devagar, sinal de que eu podia comê-la.
          O estudo de criaturas havia sido de grande ajuda naquele momento, pois eu soubera o que significava todas as ações da criaturinha. O que me deixava intrigada era o fato de estar tão longe de seu habitat natural.
          Guardei a batata e segui viagem,  eu precisaria dela mais tarde. Quando finalmente alcancei o campo aberto, o sol estava se pondo. Haviam montanhas livres de neve para todos os lados, eram enormes.
         Escalei a mais próxima e me assustei. Eu não conseguia ver o reino de Kyvar em lugar algum do horizonte, apenas restos de construções despontando na paisagens. Ignorei qualquer força inimiga que poderia haver e corri na direção dos escombros.
         O local onde havia um reino, não passava nada além de restos. Tinha sinal de batalha por todos os cantos, e comecei a pensar nas possibilidades do que poderia ter acontecido. O castelo havia sido reduzido a pó e as casas não eram nada mais que paredes sem teto.
         — Quanto tempo se passou?... — perguntei para mim mesma.
        Me aproximei do resto de uma casa e repousei minha mão na mancha de sangue antiga nela. Imagens surgiram em minha mente e levou alguns minutos até se organizarem.
         Senti o vento soprar lentamente e as folhas verdes flutuarem no ar enquanto eram sopradas, após isso, fui imersa em uma visão dolorosa.


Peddias gritavam e corriam para todos os lados, enquanto forças de Zufreid, Vurian e Millandus atacavam Kyvar na esperança de acabarem com o Império Sombrio. O caos se espalhou entre o reino, e os soldados não se importavam com a presença de inocentes.
        O dragão de asas brancas desapareceu no ar, se juntando à névoa branca. Fogo se alastrou pelas casas, inocentes morreram, e o imperador não saía do seu trono na porta do castelo, mesmo depois de a construção cair.
        Mas quando ele se levantou, com um aceno de mão acabou com todas as tropas, e decidiu que era hora de iniciar a maior inquisição. O imperador e seus soldados marcharam para Vurian deixando Kyvar queimar e virar cinzas, ignorando os gritos de dor e súplicas.
        Depois da batalha as ruas ficaram lavadas de sangue, e apenas três pessoas haviam sobrevivido. Uma mãe, um pai e seu bebê.


Voltei a mim me acostumando a sair de uma visão. O imperador deixou todos morrerem e rumou para outro reino. Respirei fundo contendo o misto de sentimentos, enquanto engolia o choro, a parte ruim das visões era sentir tudo que as pessoas sofreram.
         Peguei uma capa escura e vesti, aquela vestimenta velha me protegeria do frio, pelo menos um pouco. Pilhei os esqueletos até encontrar uma espada de uma mão, era curta, velha, mas daria para o gasto.
         Comecei a caminhar pelas ruas, na direção Sul, para sair dali e ir para Vurian. Notei movimentação repentina em uma casa destruída e fiquei alerta, olhando constantemente para a escuridão dentro dos escombros.
         O que quer que estivesse ali, eu mataria. Me aproximei em posição de ataque, atenta a possíveis movimentos, meus passos ecoavam conforme chegava perto.
         Notei mais movimentação, segurei o cabo da espada de uma mão e continuei avançando, até que de repente uma criança de não mais que sete anos surgisse na entrada. Seu rostinho estava sujo, mas havia uma selvageria característica de qualquer um que fosse obrigado a sobreviver da pior forma.
         Em suas mãos, ao invés de um brinquedo, havia uma faca velha e um pouco enferrujada. A criança correu até mim e tentou uma estocada, desviei sem dificuldade dos três ataques seguidos da criança e notei bastante garra em seus movimentos.
         Desarmei a criança tirando a faca de suas mãos, foi fácil por conta da minha maestria em combate. Joguei ela longe e fitei os olhos da criança, parecia ser um menino. Fiquei pensando no que havia feito aquele menininho adquirir tamanha garra.
         Não parecia que tinha medo, mesmo desarmado ele me encarava com um olhar irritado, que não era nada mais que fofo, não havia intimidação naqueles olhos, embora houvesse selvageria — que era bem pior — agachei para ficar na sua altura e perguntei:
         — O que faz aqui sozinho? Onde estão seus pais?
         — Meu pai está morto.
         — E sua mãe?
        Ele ficou em silêncio e percebi que ela estava naqueles escombros. Eu sabia o que era perder os pais, então decidi que faria o que pudesse para ajudar.
         — Me leve até ela, vou ver o que posso fazer — me levantei, mas o garotinho ficou parado.
         — Como vou confiar em você? Pessoas não aparecem aqui há muito tempo.
         — Não estou usando armadura, nem insígnia nenhuma.
         — Mas está com uma tiradora de vidas.
         — Tira... o quê?
         — Isso aí na sua mão, é uma tiradora de vidas.
         — Ah, você está falando da espada. Não se preocupe — cravei a espada na terra e me afastei dela —, ficará aqui enquanto estivermos lá dentro.
         O garotinho olhou para a espada, depois para mim, para a espada e por último retornou a visão para mim. Finalmente confiando ele caminhou para dentro e eu o segui.
         Desejei não ter visto aquilo, sua mãe estava com metade do corpo dela estava esmagado por um pedaço da parede de pedras e provavelmente só estava viva por conta dos cuidados do menino.
         — Espere lá fora — disse ao menino.
         Com um pouco de relutância ele saiu e comecei a analisar a situação. A pedra não poderia ser movida, e metade do corpo dela estava esmagado, com a hemorragia parada pela leve cicatrização dos vasos sanguíneos, não havia nada que eu pudesse fazer.
         — Quem é você? — murmurou ela com uma voz fraca que mais pareceu um sussurro.  
         — Sou Kristallrosa — falei sem pensar, ela precisava de algo que lhe desse esperança naquele momento.
         — Eu sabia que você não tinha morrido... Kristallrosa...
         — No que posso te ajudar?
         — Onde está meu menino? Onde está meu Uriah?
         — Pedi que ficasse lá fora.
         — Ah... és muito sábia Kristallrosa...
         — O que eu posso fazer por você?
         — Acabe com meu sofrimento...
        Aquele pedido me pegou de surpresa, eu nunca acabei com o sofrimento de alguém, era diferente de matar um soldado inimigo.
         — Acabe com meu sofrimento e cuide do meu menino...
         Ela pediu novamente, erguendo lentamente uma adaga de prata, limpa e em perfeito estado. Entendi o que era para eu fazer, e como prometi que faria qualquer coisa para ajudar, tinha que cumprir.
          Peguei a adaga de suas mão e a retirei da bainha. A lâmina estava impecável, havia nela o mesmo símbolo que vi na visão com a mulher, um dragão com uma silhueta humana em suas costas envolto em um círculo.
         — Que a luz te ilumine pelo caminho até o paraíso, que a luz te guie e purifique sua alma — falei.
         A mulher fechou os olhos e vi lágrimas escorrendo dos seus olhos, assim como os meus, e então, com um movimento único, enterrei a adaga em seu peito, fazendo a lâmina perfurar seu coração.
          Não houve tempo para sofrimento, sua morte foi rápida e praticamente indolor. Retirei a adaga do seu peito e limpei a lâmina, guardando-a na bainha.
          — Mãe... guie essa pobre alma para a Cidade nas Nuvens e dê a ela paz — sussurrei e me levantei n
         Cobri o rosto da mulher com um tecido velho ali perto, lamentei por não poder dar um enterro digno a ela, mas pelo menos consegui acabar com seu sofrimento.  
          Depois de alguns minutos chorando, finalmente tive coragem de encarar o garotinho. Sua mãe me pedira para cuidar dele, e era o que eu faria. Juntei todas as coisas dele e caminhei para fora.
        — Vamos, temos que chegar à Vurian antes do anoitecer completo — Uriah me olhou confuso.
        — Como assim? E minha mãe?
        — Ajuda vai vir salvar ela, amigos meus.
        — Então vou esperar.
        — Não vai, aqui estão suas coisas, vamos partir logo.
        — Eu quero esperar a ajuda com minha mãe.
        — Este lugar é perigoso durante a noite, sei que sobreviveu aqui, mas as coisas estão piorando, a ajuda virá, eu prometo.
         Ele pareceu controverso em seus pensamentos, mas não demorou muito para decidir vir comigo. Entreguei as coisas dele e partimos andando rápido na direção Sul, para Vurian.
         Dos saques, eu consegui dinheiro suficiente para conseguir roupas melhores e alugar um quarto para uma noite. Quando chegássemos a Zufreid, eu poderia pedir ajuda para Farwell Garlapar.
         A caminhada foi longa e exaustiva, os nervos das minhas pernas ardiam cada vez que eu me forçava a dar mais um passo. Enquanto andávamos, senti por diversas vezes uma presença tentando puxar minha atenção, dando beliscos leves em meu poder.
         Não arrisquei parar, o cansaço era muito, e uma batalha naquelas condições não seriam uma boa ideia. Entretanto a presença continuava beliscando minha consciência, querendo a todo momento me fazer parar.
          Chegamos a Vurian e tive que me esgueirar pelas casas. Haviam soldados do império por todos os lados, que me impedia de andar livremente pelas ruas. Entrei em uma estalagem simples e fui até o guichê, com Uriah ao meu encalço.
         — Preciso de um quarto, e roupa nova para duas pessoas, uma criança e um adulto — falei calmamente.
         — Dez moedas de ouro e cinco de prata — respondeu o atendente.
         Entreguei doze moedas de ouro e ele me entregou a chave. Subi de dois em dois degraus até nosso quarto, abri a porta rapidamente e assim que entrei com Uriah, eu a tranquei.
        — Você parece uma fugitiva agindo assim — disse Uriah.
         — Quando se vive neste mundo tentando fazer o bem, automaticamente nos tornamos fugitivos.
          Esperei até que as roupas chegassem e então coloquei Uriah para tomar banho. Seus cabelos voltaram a ser negros e seus olhos claros ficaram mais destacados. Vesti ele com as roupas novas, um sobretudo de couro, calças e botas, ele precisaria para atravessar a neve até Zufreid.
         Depois dele, eu tomei banho e vesti o mesmo padrão que ele, mudando apenas a calça para uma saia comprida, me senti profundamente aquecida. Olhei meu reflexo no espelho e não havia nenhum ferimento, nem sinal deles.
         — Você sabe lutar, Uriah? — perguntei deitando ao lado dele na cama.
         — Não.
         — O que sabe?
         — Meu pai me ensinava a atirar com arco e flecha um ano atrás.
         — Então compraremos um arco para você amanhã, vamos rumar à Zufreid, você vai precisar de alguma coisa para se defender.
          — Por que está fazendo isso?
          — Porque já estive na mesma situação que você, e não quero que você se torne alguém como eu no futuro.
          — Qual é seu nome?
          — Rosemary, mas pode me chamar só de Rose.
          — E você pode me chamar de Uri.
          — Tabom, Uri. Boa noite.
          Ele desejou o mesmo para mim e se virou para o lado oposto. Fiz o mesmo e devido ao cansaço dormi rapidamente.
    
      
      
       

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