Capítulo 29


      A sala em que acordei era muito mal iluminada. Eu estava amarrada a correntes que me suspendiam do chão. Olhei para a porta onde o imperador jazia esperando pacientemente. Meu corpo inteiro doía e estar pendurada não ajudava.
       O olho branco do imperador me observou como se conseguisse ver minha alma, depois começou a caminhar em minha direção. Sua aparência era de alguém com trinta anos, e seu cabelo tinha um comprimento médio.
         A cada passo que ele dava, meu corpo disparava alertas, me avisando de que estava diante do mal encarnado. Mesmo com expressão calma, eu sentia medo, algo além de mim, nunca havia me sentido tão amedrontada quanto agora.
        — Imaginei que fosse mais velha quando os boatos de que a garota da profecia estava deste lado da muralha, foi uma surpresa encontrar realmente uma menina — ele soltou um risinho —, você me será de grande utilidade.
        — Vai sonhando — falei entredentes.
        — Há! E ainda tem língua afiada, que incrível — zombou ele —, você não tem escolha, ou será útil e responderá minhas perguntas, ou irá dizer em meio ao sofrimento.
        — Eu prefiro sofrer — respondi.
        — Claro que prefere.
        Ele parou na minha frente e me encarou com aquele olho branco que dava arrepios, pensei no que havia tornado aquele olho daquela cor. Trinquei os dentes quando o imperador deu um soco no meu estômago, arfei e contive o gemido de dor.
        — A pergunta é simples... onde está o Olho de Riviera?
        — Está no inferno... — disse arfando.
        Outro soco, desta vez quase perdi todo o ar, respirei tão fundo que acabei tossindo.
       — Onde está? — ele me perguntou novamente.
        Eu o encarei com ódio, não importava a dor, não ligava nem um pouco, mas ele jamais terá a informação que precisa.
        — No inferno.
        O imperador continuou me olhando com sua expressão suave, como se eu não o tivesse desafiado ali mesmo, em seu próprio reino. Mas a resposta veio momentos depois. Ele começou a socar meu estômago diversas vezes, até ver eu curso sangue no chão.
         — Perguntarei apenas mais uma vez, onde o Olho de Riviera está?
        Comecei a tossir enquanto tentava desesperadamente puxar o ar, mas meus pulmões simplesmente não se enchiam de oxigênio não importava o quanto tentasse, eu continuava ofegante.
         Ele esperou pacientemente até eu conseguir responder, mas quando ouviu a mesma resposta que dei das outras vezes, o imperador simplesmente sorriu. 
        — Você é determinada quando quer.
         Eu acompanhei com os olhos sua movimentação por detrás de uma mesa, onde se sentou em uma cadeira estofada e bebeu um longo gole de algo dentro do copo em cima da mesa, ao lado de outros objetos que meus olhos não conseguiam ver.
         — É uma pena que eu tenha que acabar com um rostinho tão lindo apenas para obter algo que você poderia simplesmente me responder, e então teria uma morte sem sofrimento — ele bebeu mais um gole generoso e repousou o copo na mesa —, não é um pouco frustrante Rose? Que seus pais tenham morrido para que você sobrevivesse, mas morrerá nas minhas mãos.
         Trinquei os dentes sentindo o ódio queimar em meu corpo. Desgraçado, ardiloso! Pensei enquanto o encarava.
        — É triste que você tenha escolhido sofrer, é uma escolha bem idiota se quer saber, mas será mais divertido para mim.
        Ele ergueu a mão na minha direção e de repente senti como se lava fosse derrubada em meu corpo. Comecei a gritar e me contorcer, a sensação era de estar dentro de uma fogueira, ou tomando banho no fogo.
        Doía muito, e eu já não aguentava mais gritar nem me contorcer, e então minha visão começou a escurecer, mas a sensação parou e foi substituída por uma pontada única e poderosa de eletricidade, que me manteve mais desperta.
         Senti o sangue escorrer pelo canto da minha boca, e entendi a sensação de peso no corpo. O imperador fizera com que eu fosse infectada pela praga, e por isso ele me ofereceu uma morte indolor.
         Ele me fez a pergunta novamente, mas não consegui responder, meu corpo doía tanto que minha concentração era em tentar ignorar a dor, afim de que diminuísse. O imperador não teve piedade e novamente usou o poder contra mim. A tortura se seguiu por mais duas horas, até que eu apagasse.
   
Eu corria por corredores velhos e cheios de musgo. Estava sendo perseguida por uma mulher, que brincava de me pegar. No fim do corredor havia escadas, o ponto em que mais era lenta, então a mulher conseguiu me pegar.
        Era linda, uma deusa em ascenção. Cabelos brancos e brilhantes, olhos tão claros que quase chegavam a ser transparentes, com uma leve coloração azul cor do mar.
        — O que eu devo fazer para conseguir descer as escadas mais rápido? — perguntei em seus braços.
         — Tem que ter coragem, criança — me respondeu ela.
         — Como ter mais coragem? — perguntei novamente.
         — Com determinação, minha criança.
         — Como ter mais determinação?
         — Com fé. A fé é o que move e rege nosso ser, é com ela que conseguimos vencer inimigos quando tudo parece perdido. Tenha fé e só assim terá coragem, determinação, força, poder e todo o resto de que precisa para vencer as ameaças deste mundo, minha criança.
         Ela acariciou meus cabelos, e em seus braços eu era uma criança, de apenas dez anos, quando tudo teve início. Seu sorriso era contagiante, e com aquela mulher não me sentia triste, nem irritada, ela era a pura paz.
       Acreditei no que ouvi, e encostei minha cabeça em seu corpo, recebendo o carinho. Aquele sorriso era tão confortante que a minha vontade era ficar apegado a ele para sempre.
       
Abri os olhos lentamente, lágrimas desciam devagar, e cheguei a estranhar o fato de elas não terem congelado em meu rosto. Lembrei do sonho, aquele sorriso da mulher era o mesmo da minha mãe, mas por algum motivo eu não conseguia recordar do seu rosto quando tentava.
        Eu não estava mais pendurada, o chão estava frio e não havia ninguém na sala. A sensação do peso ficara mais forte, me impedindo até de movimentar minha cabeça. Mantive um ritmo coordenado de respiração, e era a única coisa que me mantinha ocupada.
         A dor persistia por dentro do meu corpo, em cada parte, como se todos os meus órgãos doessem. A praga estava agindo, e logo eu sentiria meus órgãos se tornando líquidos dentro de mim.
         Será uma morte lenta e dolorosa, mas não podia entregar as informações que o imperador queria, ou tudo estaria perdido. Pelo menos, se ele não souber a localização do diadema, um dia cairia.
         Minha boca estava com gosto de sangue e quando cuspi ela estava avermelhada. Percebi uma poça de sangue ao lado do meu rosto, o que indicava que eu vomitara algum momento antes de acordar.
         Respirei fundo e continuei no ritmo, enquanto minha visão se acostumava com a escuridão. Eu devia estar em Kyvar naquele momento, afinal, fora o primeiro reino que os Pesadelos tomaram.
         O imperador fora meticuloso, escolhera Kyvar pela qualidade no ataque aéreo, e não queria mostrar sua carta na manga quando atacou Millandus. Aquilo fora só um aviso, um recado de que estão em qualquer lugar.
         Eles haviam permitido se vencer, apenas para o imperador ter certeza de que eu estava no reino. Extremamente meticuloso e inteligente. Me surpreendia o fato de não ter percebido até que acontecesse.
          Porém, lamentar não servia de nada mais, meu fim estava próximo e logo todo o sofrimento acabaria. Comecei a pensar em formas de matar o imperador e me agarrar a ele até o inferno.
          A porta se abriu e levantei os olhos para ver quem entrara. Dois soldados prenderam minhas mãos nas correntes e puxaram até erguerem meu corpo do chão. O imperador entrou observando meu estado, depois balançou levemente suas mãos em sinal de dispensa.
         Os soldados saíram e fecharam a porta. O imperador, em silêncio, tirou suas mãos das luvas e as colocou em cima da mesa. Respirar era difícil, ainda mais com meus órgãos fracos pela praga.
         — Vejo o sofrimento em seus olhos, estão vazios — ele me olhou —, eu poderia tirar isso de você, se cooperasse em me dizer onde está o diadema.
          — O sofrimento se torna uma dádiva nos momentos certos — tossi e cuspi mais sangue —, você nunca saberá onde encontrar...
          — Sabe, você poderia ter outras dádivas se não fosse burra.
         Ele pegou a cadeira e colocou perto da mim, segurando um frasco com um líquido escuro e pegajoso, reconheci a consistência, era Gingar, o principal antídoto para a praga.
         — Tenho aqui uma dose do antídoto que pode eliminar a praga do seu corpo mais rápido do que ela age. Estou disposto a negociar.
        Esperto... muito esperto...
        Percebeu que eu não abriria mão da informação pela dor, afinal, resisti até agora, mesmo com toda aquela tortura com a sensação do fogo ou a praga me matando aos poucos. Então achou que me compraria com o antídoto.
         Mas está errado.
         — A dor passa a ser agradável quando se acostuma com ela — falei pausadamente, estava difícil respirar.
         O imperador riu.
        — Se você não é a garota mais determinada que eu já vi na minha vida, deve estar entre as melhores.
         Ele se levantou e me olhou de cima a baixo. O imperador soltou as correntes e eu me choquei contra o chão, sentindo algo dentro de mim chacoalhar.
         O imperador pisoteou minha mão com a bota, até ouvir um barulho quebradiço. Não consegui gritar diante da dor de ter meus dedos esmagados. Lágrimas brotaram do canto dos meus olhos e molharam meu rosto.
         — Tudo bem, já que não quer cooperar, vou deixar você morrer aqui sozinha — disse ele com um tom de irritação. 
        Ele pisoteou minha outra mão, esmagando meus dedos como na outra. Mais lágrimas escorreram e então o imperador pisou na minha cabeça, forçando-a contra o chão.
        — Você é uma garota muito burra, poderia ter escolhido cooperar e não estar sofrendo tudo isso, mas decidiu esconder as informações.
        E vou morrer com elas. Pensei enquanto ele ia até sua mesa. O imperador colocou as luvas e saiu da sala e escutei o estampido da tranca pelo lado de fora.
        Me permiti chorar, afinal, estou sozinha mesmo, ninguém veria, ou faria perguntas, nem seriam curiosos para quererem saber o motivo das lágrimas.
         Chorei não só pela dor, mas por saber que nunca mais veria Amanda, nem caminharia pelas ruas de Millandus. Os Manak perderiam sua esperança por conta da minha morte.
          Não queria admitir, mas no fundo eu estava com medo de morrer, todos temos a certeza de que a morte um dia recolherá todos, mas o fato de que pode acontecer antes do tempo, assustava.
         Fechei os olhos e vi o sorriso da minha mãe. Pedi perdão a ela em pensamento, pelo esforço em vão de terem morrido para que eu vivesse, mas no fim não fizera diferença, a morte estava vindo para me buscar.  
          A dor era como se eu estivesse sendo espetada por milhares de espinhos venenosos o tempo todo, além disso, ardia, e imaginei ser febre. Fazia sentido, eu estou com a praga dentro do meu corpo.
          Minhas mãos latejavam de dor, meus dedos estavam virados em ângulos fora do normal. O imperador os quebrara. Pela primeira vez, senti o toque da morte que já aguardava o momento certo de pegar o que é seu.
        Senti algo subir a minha garganta e então vomitei uma grande quantidade de sangue e bolotas de carne. Olhei Aquilo com medo, eu vomitara os restos de algum órgão meu.
         Tentei me lembrar da ordem em que os órgãos eram afetados pela praga, e me lembrei que os rins eram os primeiros a derreterem, afinal, são responsáveis pela purificação do sangue.
         Àquele ponto não havia mais nada a ser feito, o Gingar não faria efeito pois meus órgãos estão se decompondo, questão de um ou dois dias até minha morte eminente.
         Em breve não conseguiria mais falar, muito menos ver com clareza. Quem imaginaria que depois de tanta coisa, eu morreria por não ser forte o suficiente.
          Um sentimento de falha se instalou em mim, pois prometi aos Manak que derrubaria o Império, entretanto, não conseguia nem erguer a mão, quanto mais matar o inimigo nas condições do meu corpo.
          

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