Capítulo 18


       Caminhei pela cidade naquele mesmo dia. A palavra "Sacerdotisa" ecoava na minha cabeça mais forte que os sons do ataque à Millandus meses atrás. Amanda me seguia de perto, com a cabeça tão baixa que lembrei do incidente, de como ela havia ficado depois dele.
        — Quero visitá-lo — disse ela.
        — Claro, vamos aproveitar que estamos aqui — respondi calmamente.
        No fundo eu entendia o que Amanda estava sentindo. Não era culpa, mas tristeza por ter feito aquilo. Por ter chegado naquele nível, por ter sido forçada a matá-lo para viver.
        Embora eu tivesse dito a ela diversas vezes que estava tudo bem, Amanda nunca deixou de acreditar que teria outro jeito, e se precipitou em um momento de desespero e raiva.
       Sempre acreditei que Amanda não era do tipo sangue frio, e tive certeza quando a coloquei para morar comigo. Nada do que eu dizia fazia ela mudar seu pensamento.
       Passamos em uma floricultura, Amanda comprou um buquê de lírios e caminhamos na direção da colina lacrimejante, o lugar onde as pessoas eram enterradas ao morrer.
       A colina era verdinha, com grama baixa e bem aparada. Por todos os lados podíamos ver lápides que correspondiam as pessoas mortas há muito tempo, ou não.
       Andamos até um retângulo de quartzo branco, com um nome gravado em uma placa de ferro. As letras douradas brilhavam com a luz do dia. Micael L. Rendraad.
        Ela repousou o buquê de flores em cima do quartzo branco e tão polido que eu conseguia ver meu reflexo nele.
         Ao longe vi alguém se aproximando. Usava um sobretudo preto, luvas marrons e botas no tornozelo. Samuel não esbanjava seu sorriso sarcástico de sempre. Talvez pelo menos uma vez na vida ele seja respeitoso.
        — Olá — disse ele se colocando ao nosso lado. Observou o túmulo de Micael e abaixou a cabeça, citando uma reza antiga para os espíritos serem guiados à eternidade.
       — O que está fazendo aqui? — Perguntei. Minha mão formigava de vontade de sentir o cabo da minha adaga no cinto.
       — Visitar minha avó — ele observou o céu levemente nublado —, morreu pela praga em uma viagem à Kyvar.
       — Sinto muito... — murmurou Amanda.
       — Soube do seu pai. Sinto muito pelo que foi obrigada a fazer para sua própria proteção — respondeu.
       Fiquei surpresa, Samuel estava sendo amigável pela primeira vez. E se talvez ele fosse no fundo?
       — Rose, meu pai disse que admira você, mandou cumprimentos em nome da família assim que eu a visse — Samuel se colocou de frente para nós e bateu duas vezes no peito, com o punho fechado, por cima do brasão dos Azarir.
        Entendi o gesto e devolvi com um aceno de cabeça. Ele passou por mim e desapareceu no horizonte, em direção à cidade. Amanda também estava confusa, podia ver isso em seu rosto.
        Depois de Amanda ter um tempo para se culpar, voltamos para a cidade. Os trabalhadores andavam de um lado ao outro, enquanto os soldados da guarda real escoltavam e revistavam qualquer pessoa suspeita.
        Fomos até um bar próximo dali e nos sentamos, sabíamos que logo Marcus apareceria. Pedimos duas canecas de vinho e esperamos. Mesmo que eu ainda não estivesse dentro da guarda real, tinha uma missão com os Rosário.
       Marcus apareceu com um rolo de mapas, se sentou e respirou fundo. Me ajeitei na cadeira abri o mapa da região de minhas terras. O cansaço que meu amigo demonstrava, indicava que havia sido difícil consegui-los.
        — Descobriu alguma coisa? — Perguntei.
        — Esse mapa é dos arquivos oficiais do conselho, as marcações avermelhadas são os movimentos dos Azarir, catalogadas em tempo real de sua última expedição.
        Ao olhar no mapa, uma confusão se espalhou pela minha mente. As manchas vermelhas estavam bem longe das minhas terras, diferente do que os pais de Edward disseram.
        Olhei mais duas vezes, seguindo com o dedo todas as marcações e nenhuma delas se afastava muito de uma região chamada Bosque do Canto de Pássaros.
        Peguei o segundo mapa e o estudei, e as informações eram semelhantes. Os Azarir nunca saíam do bosque, ou das redondezas. Não fazia sentido algum.
        — Eu também fiz essa cara quando olhei os mapas — disse Marcus —, os Azarir nunca chegaram perto de suas terras.
        — Só temos esses mapas? Tem algum com as movimentações dos Rosário ou Bellarim? — Perguntou Amanda.
        — Os Bellarim se aproximam muito de Carban, onde criaram um criadouro de diferentes animais para vender a carne e fazer tecido com suas peles e couros — respondeu ele —, não havia nenhum retratando movimentações dos Rosário.
        — Com o que os Azarir conseguem dinheiro? — Olhei para Marcus e o vi beber um gole do meu vinho.
        — No bosque tem uma variedade de aves, eles usam as penas para fazer canetas, além disso, constroem navios e os exportam para outros reinos. Eles também usam suas próprias embarcações para realizar exportação marítima de produtos — ele mudou a folha do mapa e mostrou outro. A movimentação dos Azarir pelo mar era a noroeste do penhasco gladiador.
         Será que estavam escondendo suas movimentações? Só haveria um jeito de saber, entrando na residência dos Azarir e procurar em seus arquivos pessoais.
        Como faria isso era a questão.
        — Se estão escondendo movimentações, precisamos dos arquivos pessoais da família — falei — vamos estudar o dia a dia deles e descobrir quando teremos melhor chance de conseguir. Eu irei entrar na casa.
        Amanda me olhou incrédula, como se não acreditasse que eu havia dito aquilo. Eu já podia prever suas palavras seguintes, e foi exatamente as que ela disse.
        — É arriscado, se for descoberta lá dentro você pode ser presa.
        — Claro que é, mas não temos escolha — me recostei na cadeira —, mês passado descobri que há mesmo pedras preciosas nas minhas terras, os Rosário não mentiram sobre isso, então dificilmente iriam mentir para mim sobre os interesses dos Azarir.
         — Rose, desde que começaram as obras nas suas terras, nenhum Azarir foi visto — falou Amanda, tentando ao máximo me convencer a não invadir a casa dos Azarir —, talvez os Rosário estejam enganados.
       Fiquei pensativa, não conseguia parar de olhar os mapas espalhados na mesa. Era estranho que os mapas não demarcassem as movimentações acusadas pelos Rosário.
        Não era possível que não estivessem ali, eu havia visto aquele mesmo mapa meses atrás quando aceitei o trato com os Rosário, mas já não fazia sentido algum.
      


Fomos para a Caída dos Cristais. Amanda se sentou e repousou sua cabeça em meu ombro para ver o pôr do sol, como fazíamos todo final de tarde. Ouvi a respiração calma dela no meu ouvido e sorri.
       Fazia cócegas, mas fiquei quieta, não queria atrapalhar aquela calmaria entre nós duas. O rei me alertara sobre uma possível guerra contra os Pesadelos, que continuavam ganhando território rapidamente.
        Analisando suas ações, percebi o quanto o líder deles era inteligente. Eles tomaram Kyvar, um dos reinos com maior poderio militar do lado Norte.
        Esperto.
        Com o controle do exército de Kyvar em suas mãos, o líder dos Pesadelos atingira um nível maior de poder. Na última reunião do conselho, foi ressaltado com nossos inimigos estivessem tomando todos os reinos do lado Norte, para conseguir força o suficiente que seja capaz de destruir a muralha.
         A viagem até Zufreid seria para adiantarmos uma conversação sobre uma aliança, assim tudo seria discutido ali mesmo e resolvido no mesmo dia.
         Era um movimento inteligente do rei, mesmo que os benefícios não cubram os custos da viagem. Água e comida para os cavalos, pagamento para os condutores das carruagens, e preparação militar.
         Tudo isso custaria dez mil moedas de ouro, diretamente do cofre pessoal do rei, que decidira não gastar nada das reservas do reino, nem apelar para as outras casas, afinal, elas tinham ajudado com os custos dos reparos a serem feitos em Millandus.
        — Olha — Amanda apontou para uma estrela brilhante no céu —, ela, somos nós.
        — É mesmo? Por que?
        — Porque é a que brilha mais e a primeira a aparecer — respondeu ela.
        Não evitei sorrir e senti minhas bochechas queimarem.
       — Gostei — depositei um beijo no topo de sua cabeça.
        Meu sorriso se desfez quando lembrei que ao fim do ano, eu me alistaria para a iniciação da guarda real.
        No fundo eu tinha medo. Medo de que aqueles momentos não voltariam, ainda mais com a possibilidade de uma guerra eminente. Joel já me contara sobre uma, ele havia participado da Guerra dos Santos.
        Se a guerra que se aproximava sequer chegasse aos pés da Guerra dos Santos, os estragos seriam inevitáveis, me arrepiei só de lembrar do que estudei.
        Eu no fundo temia perder Amanda, afinal, era minha única companheira, a primeira amiga que tive quando cheguei em Millandus. Lembrei-me da menininha alegre de cabelos cor do sol vindo falar comigo.
        — Amo você — deixei escapar.
        Eu precisava dizer aquilo, mesmo que parecesse estranho por ter sido tão repentino, mas naquele momento, era como se a necessidade de a fazer se lembrar que a amo, superasse qualquer coisa.
        — Eu também amo você, Duquesa Rosemary Rigdor — ela riu.
        — Você também pode ser considerada uma duquesa — brinquei.
         — Oh não — murmurou fingindo um tom dramático.
       Dei risada, algo que eu só me permitia fazer quando estava com Amanda, era como se ela fosse um porto seguro para mim.
        — Acho que acabaria maluca se algo acontecesse a você — falei baixinho.
        Amanda se virou para mim e me deu um selinho. Meu corpo relaxou na mesma hora.
       — Com você ao meu lado, o que poderia acontecer? Rose, você é mais protetora que uma tigresa com seu filhote.
        — Espero que você esteja certa...
       Ela sentou no meu colo e tocou minhas bochechas com suas mãos, olhando dentro dos meus olhos com expressão preocupada.
       — O que foi? Está deprimida, posso ver nos seus olhos — ela continuou me encarando.
       — Tenho medo... medo de que eu possa perder, que me deixe ser descuidada e algo aconteça, tudo nesse mundo parece querer retirar algo importante de mim. 
       — Como assim? Eu estou aqui.
       — Eles já tomaram meus pais de mim, todos os meus amigos que moravam na minha casa e serviam meus pais, todos os servos divertidos com quem passava horas conversando... — abaixei a cabeça, mas ela levantou meu queixo —, tomaram minha inocência, minha infância e, só não tomaram minha sanidade porque tenho você e os meninos. 
        — Rose, meu amor — ela disse e fitei seus olhos refletindo a luz da lua na água da cachoeira —, nada, nem ninguém vai me tirar de você, não vão tomar mais nada de você.
        — Mas... — comecei a falar, mas Amanda me calou.
        — Preste atenção, quero que me veja — ela aproximou seu rosto de mim —, entreguei meu coração para você, e não existe nada mais forte do que esse sentimento, vamos superar juntas qualquer coisa, mesmo se for uma guerra, sabe porquê?
        Neguei com a cabeça.
        — Porque criamos um futuro em nossa mente, e ele tem de ser realizado, eu estarei com você em qualquer situação, você não irá me perder.
        Amanda me beijou e eu devolvi. Aquelas palavras valeram muito para mim, a sensação era de leveza e alívio, como se tudo que ela tivesse dito se realizaria independente das circunstâncias.
        Abracei ela, e fiquei sentindo o cheiro do seu perfume. Eu não podia falhar com Amanda, não conseguiria lidar com a culpa de destruí-la, uma moça tão alegre e gentil como ela era uma dádiva ao mundo.
        Embora não confiasse em minha própria capacidade, eu faria de tudo para impedir que algo ruim aconteça a ela, assim como meus pais fizeram, ficando para lutar e distrair os inimigos enquanto eu fugia.
         Uma lágrima desceu, e só percebi que estava chorando quando senti o gosto salgado nos meus lábios e, percebi que não eram de saudade, mas de medo.

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