Capítulo 37


      Gritos ecoavam em meus ouvidos, pedras em chamas caíam dos céus e o chão estava lavado de sangue. Guerreiros lutavam sem parar, afastando o medo da morte, tropas de Rubria chegavam e batalhavam com todas as forças.
       O cansaço era aparente em seus olhos, os movimentos se tornando lentos, as expressões de dor enquanto tentavam se manter de pé. Todos sabiam que aquele cenário seria inevitável.
        Amanda lutava entre os soldados, com a graciosidade de uma Mestra-Sacerdotisa, mas, de repente sangue jorrou do seu estômago. Ela cambaleou e vi os soldados vestidos de preto transformarem seu corpo em um aglomerado de carne e ossos.


Acordei desesperada, meu corpo estava molhado de suor. Eu respirava de modo irregular, o pesadelo me causara sensações diferentes, mas o que predominou foi a parte do sonho em que Amanda era morta na batalha.
        Me vesti rapidamente e segui para fora do quarto. Alguma coisa estava acontecendo, eu podia sentir. Nos três dias que se passaram desde que cheguei a montanha corta-vento não tive notícias dos nossos espiões.
         Atravessei o saguão principal e segui para a sala de reuniões, algo dentro de mim apontava que tinha alguma coisa acontecendo ali dentro. Quando cheguei a porta estava entreaberta, como se soubessem que eu chegaria.
         Entrei e notei as expressões de espanto nos olhos das Mestra-Sacerdotisas. Havia uma carta repousada na mesa, que foi passada para mim assim que sentei. Comecei a ler.
 
Saudações


Relatório primeiro. Caçador Furgat.
  
Fomos interceptados depois que atravessamos a muralha, dois de nós fomos feridos. Estou escondido junto com os dois, eu os recolhi. Estão em estado grave, será impossível continuar a missão com eles assim, precisamos de ajuda.


Olhei para as Mestra-Sacerdotisas, Yara parecia preocupada, afinal, nossos melhores homens haviam sido enviados, se foram interceptados significa que o império está guardando a muralha.
        Pensar em Joel foi inevitável, ele vivia na muralha. Só havia uma coisa a se fazer, eu tinha que ir até o esconderijo e ajudar os outros, talvez até continuar a missão por eles. Com toda certeza Yara não concordaria.
        — O que vamos fazer? — perguntou uma das Mestra-Sacerdotisas.
        Fechei os olhos e comecei a pensar. Sem que eu tivesse controle uma visão inundou minha cabeça. Um caminho se seguiu entre corredores até chegar em uma cela. Vi cabelos loiros e um murmurio. Alguém estava sofrendo naquela prisão e de repente ouvi uma risada alta.
        Voltei a mim e fiquei ofegante, eu reconhecia aqueles cabelos, o tom de loiro natural. O que eu deveria fazer se formou na minha mente. Segui os rostos das mulheres na mesa e organizei as palavras.
         — Precisamos ir atrás de um homem chamado Joel, ele era comandante da guarda real de Millandus, lutou na guerra dos santos, tem conhecimento infinito na questão de guerra — falei.
         — O que espera com isso? — perguntou uma delas.
         — Irei até Millandus, tive uma visão agora pouco, temos que salvar algumas pessoas importantes. Há uma sacerdotisa presa pelo império.
         — Negado, você não pode ir à Millandus Rose, é perigoso — disse Yara.
         — O que eu não posso, é ficar aqui parada enquanto pessoas morrem em meu nome — refutei.
         — É isso que uma deusa faz.
         — Está aí o problema, não sou uma deusa qualquer.
        Me levantei e saí da sala.
        Eu sabia que enfrentar as Mestra-Sacerdotisas não era uma boa ideia, mas não havia outra opção, salvar meus amigos era um risco que eu estava disposta a correr.
         Caminhei até o topo da montanha corta-vento, Uriah me esperava pacientemente. Os alvos estavam montados e já haviam algumas flechas neles.
         Encostei no parapeito e suspirei olhando para o horizonte de branco. Aquelas visões estavam me cansando, a cada momento do dia eu as tinha, e eram sempre sobre a mesma coisa, uma cela e cabelos loiros dentro dela.
         Se não significava que Amanda estava presa, ela poderia ser. Eu nunca sabia se as visões eram antes de acontecer ou depois, então era impossível agir sem saber com clareza o que acontecia.
         Baixei a cabeça e fiquei imersa na visão, tentando entender o que ela tentava me dizer. Minha cabeça era um turbilhão de pensamentos e caminhos diferentes que eu podia seguir.
          Uma flecha cravou ao lado do meu pé e fui retirada do meu torpor, olhei para Uriah e o vi colocando outra flecha no arco. Ele disparou de novo, dessa vez mirando diretamente em mim.
          Retirei a adaga da bainha presa a minha cintura e desviei o trajeto da flecha, enquanto outra já era direcionada. Desviei e avancei na direção dele, que não parava de disparar flechas em minha direção.
         Desviei, desviei, rebati, desviei.
         Não havia tempo para pensar no que fazer, Uriah atirava várias vezes e me forçava a desviar mais do que rebater as flechas com a adaga. Sete, dez, doze, quinze, dezetesse flechas ele disparava.
          Aos poucos a quantidade foi aumentando e não me dava tempo de sequer reagir. Eu precisava ser mais rápida se quisesse chegar em Uriah. Rebati e avancei desviando ao mesmo tempo.
         Não funcionava, tinha que ser mais rápida. A quantidade de flechas que eu desviava diminuiu, dando-me mais liberdade para avançar.
         Mas ainda precisava ser mais rápida.
         E então senti uma leveza atingir meu corpo, fechei os olhos e me entreguei a sensação. De repente toquei o braço de Uriah.
          Abri meus olhos e o vi com o arco abaixado, ele sorria. Haviam diversas flechas caídas no chão, algumas partidas e outras inteiras. Me senti calma por algum motivo.
         — Como? — perguntei.
         — A distração é a melhor arma contra a perturbação da mente — disse ele —, eu sabia que você não estava bem, então te distraí.
         — Obrigada — fiquei ereta respirando fundo —, bom, vamos continuar seu treinamento.
         Ele assentiu e colocou seu arco no chão, tirou uma adaga do peitoral de couro e a girou na mão. Uriah assumiu uma posição de ataque pouco falha, e me surpreendi com a velocidade no qual aprendia as coisas, mesmo tendo apenas sete anos.
         — Hoje, você vai aprender que ataque não é tudo em um combate, é preciso defender também, se você ataca demais, acaba dando espaço para o adversário contra-atacar.
       Uriah escutou atentamente, absorvendo as palavras com clareza. Depois que expliquei, ele mudou de posição, assumindo uma defensiva ao invés de ofensiva.
        Uma estratégia extremamente inteligente, pois eu estava quase me acostumando com sua posição de ataque, seu modo de pensar seria útil em possíveis duelos.
         Ele ficou parado e eu sabia que não me atacaria. Avancei e Uriah esquivou rapidamente, sua movimentação era interessante e ágil, devido ao seu corpo pequeno.
         Troquei a adaga de mão e ataquei de novo, mas ele bloqueou e se afastou. Não demorou muito para nos atacarmos. Cada um parava no bloqueio do outro. De repente Uriah fez uma finta para a direita e encontrou uma abertura em minha defesa.
        Senti a ponta de sua adaga contra minha costela, ele estava ofegante demais para falar, mas pareceu surpreso ao ver o fio da minha adaga em seu pescoço.
        — Você não luta como um iniciado em combate — falei enquanto ficava ereta e guardava minha adaga.
        — Não sou, meu pai era soldado, me ensinou desde pequeno a lutar, estou aprendendo com você algumas técnicas.
         — Mas você tem sete anos, como é tão bom?
         — Quem te disse que tenho sete anos?
         — Não tem?
         — Não, eu tenho nove anos.
         — Oh...
       Fiquei surpresa, ele aparentava ter sete anos, talvez por ser magrinho. Uriah estava começando a comer direito há pouco tempo, eu podia ver alguns sinais de que ele ganhou um pouco de peso.
        Passamos a tarde treinando, paramos apenas para comer e nos hidratarmos. Uriah ganhara um brilho nos olhos que me deixava feliz, não parecia mais um garotinho selvagem com medo da própria sombra.
         E era importante que ele adquirisse coragem para enfrentar qualquer perigo que ousasse aflingir sua paz. Os treinamentos não eram para fazer dele uma arma, muito menos um soldado.  
         Se auto proteger é importante no mundo em que vivemos, é necessário saber se defender ou a morte é inevitável.
         Depois do treinamento, Gingar me esperava do lado de dentro, falei para Uriah ir tomar banho e esperei até que ele desaparecesse dobrando o corredor.
         Gingar me observou em silêncio, esperando que eu voltasse a atenção para ele. Os Manak odiavam falar quando a pessoa não lhes davam atenção.
         Voltei a olhar para o rosto do capitão dos caçadores. Ele abriu a boca, fechou, reformulou suas palavras e disse:
        — Eu irei com você até o outro lado, e não está aberto a discussão.
        — Digo o mesmo, irei sozinha, não quero correr o risco de perder mais homens.
        — Não podemos correr o risco de perder a Kristallrosa, de novo.
        — Gingar, essa profecia que envolve meu nome é uma maldição tanto quanto uma benção. Não se esqueça que Maalavan está morto por ter lutado ao meu lado.  
        — Então é culpa? Se culpa pela morte do meu irmão?
        — Acredito que você como capitão, já deve ter sentido culpa tanto quanto eu.  
        — Kristallrosa, não foi culpa sua.
        — Ele estava comigo! Lutou por mim até o último momento! Como pode me dizer agora que não foi culpa minha?! — esbravejei.
        — Maalavan lutou por todos nós, naquele dia era para que ele ficasse aqui no esconderijo, mas me disse que  estávamos perto de mudar este mundo, garantir sua proteção era garantir a esperança para o povo... ele morreu pelo povo...
         Minha raiva se dissipou, eu não tinha pensado naquilo, Maalavan estava se importando com todos, menos ele mesmo. Baixei minha cabeça, pois sabia que Gingar também estava fazendo isso, e seu futuro seria o mesmo do irmão.
         — Gingar... não posso te levar.
         — Já disse que isso não está para ser discutido, eu irei e ponto final.
         — Por favor...
         — Rose — me surpreendi, fora a primeira vez que ele me chamou pelo nome —, não irei morrer, eu já lutei muitas batalhas, sei me cuidar.
        Assenti com os olhos cheios de lágrimas, fora a primeira vez que Gingar demonstrava pesar pelo seu irmão que morreu lutando por mim, ele estava certo, eu me sentia culpada, por não ter feito nada, por não ter o que fazer.
         Gingar desenhou um círculo no peito com o dedo indicador, e foi como se eu visse o símbolo do dragão na adaga. Decidi que iria falar com uma Sacerdotisa para saber o que significava.
         Ele me prometera que não morreria, e para mim isso bastava, Gingar tinha razão na questão de ser um homem que lutou muitas batalhas, não morreria nas mãos de um qualquer. 
         Por algum motivo eu sentia que os Manak eram mais minha família que o rei e a rainha de Millandus. Eu sentia que o rei tinha algo haver com o imperador.
          Não tinha certeza, mas sentia que os dois tinham alguma correlação. Percebi que Gingar me observava, esperando uma resposta talvez.
         — Quantos mais você vai levar? — perguntei, eu imaginava que Gingar não deixaria que fôssemos sozinhos.  
         — Apenas Unsan.
         Estratégia.
         Percebi que era uma estratégia tarde demais, Gingar é força bruta, Unsan é o observador, os dois iriam comigo para fazer um levantamento das forças inimigas.  
        — Você é um maldito inteligente! — exclamei e o vi abrir um sorriso.
        — Além de proteger você, nós precisamos fazer o trabalho dos espiões, lembra?  
        — Na verdade eu havia esquecido disso, estava pensando em outra coisa. 
        — Eu sei, vamos resgatar seus amigos, Yara viu isso em seu interior.
        — Crucia?
        — Meu irmão percebeu quando ela tinha onze anos, desde então a preparou para ser Mestra-Sacerdotisa.
        — E possível Moth'er.
        — Exatamente.
        — Vamos preparar uma estratégia, não vamos entrar lá com a cara e a coragem.
         Gingar assentiu e fomos para a sala de reuniões. Passamos quatro horas analisando mapas e montando planos e planos alternativos.
         Mais tarde eu segui até a sala das Mestra-Sacerdotisas, afinal, precisava perguntar sobre o símbolo da adaga e das minhas visões. A sala era do tamanho do salão principal, pouco iluminada, semelhante ao antigo quarto do velho Fath.
          As doze Mestra-Sacerdotisas estavam assentadas em cadeiras encostadas em uma parede curvada, que me dava a sensação de estar circundada por elas. Suas expressões eram severas e não havia nenhuma emoção nos seus rostos.
        — Preciso de uma resposta — falei baixinho.
        — Sabemos, todas nós sentimos isso — respondeu ela de modo severo —, o que quer?
        — Quero saber o que significa um símbolo.
        — Qual?
        — Este — mostrei a elas, eu havia desenhado o símbolo em uma pedra lisa com tinta branca.
        Elas conversaram entre si, baixo demais para eu conseguir ouvir. Passados alguns minutos as Mestra-Sacerdotisas me olharam.
        — É o Ciclo da Era Sagrada.
        — O que significa?
        — Significa que quando o imperador for derrotado, qualquer um que ver uma mulher montando o dragão de asas brancas, se curvará e adorará a reencarnação de Riviera.
       
        
          
        
       
  
        
    

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