Capítulo 36


       Segui com Uriah até a antiga sala no qual tudo me foi revelado. Estava intacta, como se eu não tivesse partido aquela mesa em duas partes e quebrado tudo quando estive com a esfera da verdade.
         Eu tentava assimilar todas as informações que eram jogadas para mim, mas sem sucesso. Poucas horas no palácio do céu tinham sido dois anos na terra.
        Me sentei e Uriah ficou ao meu lado, como uma sentinela para defender sua rainha, estremeci com a possibilidade, com toda a certeza o garoto não lutaria uma batalha perdida, não enquanto eu viver.
        Yara ficou de frente para mim, tentando entender o que estava acontecendo, ou como eu havia voltado. Com toda certeza teria que explicar, mas primeiro tinha que garantir uma coisa.
        — Peça para gingar não espalhar essa informação, o imperador iria adorar saber que não estou morta como ele pensa — pedi e Yara confirmou com a cabeça, em seguida se virou para um caçador.
        — Ingen ska veta att kristallrosen har återvänt från de döda — disse ela na língua antiga. E entendi como: Ninguém deve saber que a Kristallrosa voltou dos mortos.
        Ela se virou para mim e olhou para Uriah, mantendo sua expressão gentil de sempre. Era incrível como mesmo depois de dois anos, sua gentileza continuava a mesma.
        — E você, quem é? — perguntou ela a ele. 
        Uriah olhou para mim e acenei positivamente com a cabeça para que a respondesse. Percebi que o garoto começava a confiar melhor em mim há pouco tempo, e tomei aquilo como uma dádiva.
        — Sou Uriah, Uriah...
        — Rigdor, agora é um Rigdor — interrompi antes que ele dissesse seu sobrenome verdadeiro.
        — É um prazer, Uriah. Sou Moth'er Yara, Mestra-Sacerdotisa desse povo.
        — O que houve com as outras? — perguntei. De todas as Mestra-Sacerdotisas, com certeza Yara era a última a ser cogitada para governar o povo Manak.
        — Vamos chegar lá... — ela voltou a olhar para Uriah —, querido, pode esperar lá fora? Se quiser eu peço para Makir levar você para brincar com as crianças daqui.
         Ele olhou para mim de novo e confirmei com a cabeça. Uriah deixou seu arco comigo e um dos caçadores levaram ele corredor adentro. Yara acenou com a mão para que seus protetores saíssem e fechou a porta por dentro.
         — Como pode estar viva? O imperador espalhou por aí que matou você — perguntou ela voltando para a cadeira.
         — Eu morri mesmo... encontrei minha mãe no palácio do céu, sou filha de Riviera.
         — Então é uma confirmação de que você de fato é a garota da profecia?
        Assenti.
         — Como voltou?
         — Tudo que acredita sobre deuses, não é verdade, os Siefes existem e foi com uma longa conversa que consegui convencer eles a me ressuscitar.
         — E isso demorou dois anos?
         — Lá no palácio do céu foram apenas algumas horas — fiz uma breve pausa e continuei —, o que aconteceu em dois anos?
         — Houve uma guerra... o império se tornou muito audacioso e corajoso, avançaram para Vurian, depois tomaram Zufreid, passaram pela muralha e chegaram ao outro lado.
         Meu corpo gelou. Pensei imediatamente nos meus amigos, se o imperador lembrasse do rosto de Amanda, ele com certeza faria algo contra ela.
         — Quais reinos sobraram? — perguntei com um pesar na voz.
         — Pelos rumores... só Rubria.
        Me recostei na cadeira, Millandus havia sido dominada, tentei pensar nas consequências, Marcus não deixaria ninguém chegar perto de Amanda, me prometera isso certo dia, o que teria acontecido neste meio tempo?
        Comecei a pensar como um soldado, formei estratégias diferentes e todas as consequências que elas trariam, mas nenhuma se encaixava nos planos. Eu não queria baixas nas batalhas futuras, e o tempo era curto demais para pensamentos demais.
        Eu estava de volta, e a ideia era conseguir cumprir com minhas obrigações. Precisava pensar, e desde que voltara, minha mente parecia muito mais aberta e trabalhava mais rapidamente.
         — O que devemos fazer? — perguntou Yara —, desde que o império se tornou corajoso para atacar com força, mandei nossos homens voltarem aos esconderijos, não temos como pisar lá fora. Todas as criaturas parecem profundamente incomodadas com a situação do mundo. Os Halab sumiram e os Farejadores de Medo ficaram muito mais atrevidos.
         — Primeiro temos que obter informações, reúna nossos homens mais inteligentes, precisamos de espiões. Quero saber a situação de Millandus e Liceo. Rubria será nossa última contactada. Vurian está cheia de inimigos, passei por lá no caminho para cá — respondi.
         — Zufreid foi a que mais sofreu, o império quase dizimou o reino. Colocou um homem para governar Zufreid e Vurian, já que Kyvar não existe mais.
         — Onde esse homem fica?
         — Zufreid.
         — Faremos o seguinte. Vamos preparar nossos homens para o combate, temos que tirar o Império do controle deste lado da muralha.
         — Seu plano é tomar Vurian e Zufreid?
         — Sim. Vamos atacar os dois reinos ao mesmo tempo, o homem não saberá o que fazer, ficará sobrecarregado.
         — E depois?
         — Juntaremos forças com Rubria e tomaremos de volta o que é nosso.
         Yara entendeu o que eu quis dizer. Uma guerra era quase certa, não teríamos outra escolha. Meu plano consistia em obter o máximo de informação possível, não tínhamos uma noção de forças do imperador do lado sul da muralha.
          Eu me vingaria dele, jogando do modo mais cruel possível. Tomando suas forças. Provavelmente está em Millandus, comandando todos os reinos no qual já tomou. E Rubria deve estar em sua mira, mas já imaginava que Silrur seria o adversário mais complicado.
         Mas primeiro, eu tinha que descobrir o que estava me perseguindo mais cedo. Se fosse o dragão de asas brancas, ele seria minha porta de entrada para o templo, entretanto, saber como Amanda, Marcus e Edward estavam era a prioridade.
         Depois do conversa, Yara me levou para ver as tropas que tínhamos conosco, depois mostrou os mapas e as localizações dos outros esconderijos. Só no lado Norte haviam mais sete, alguns bem perto e outros distantes.
         Cada informação que minha mente recebia, era uma estratégia diferente que se formava, e eu estava estranhando aquilo. Minha mente parecia trabalhar melhor, com se todo o conhecimento do mundo estivesse em mim.
         Mas deixei para pensar nisso mais tarde e me concentrei no que era dito a mim. Mil homens no esconder da montanha corta-vento, e aproximadamente dez mil juntando todos os outros esconderijos. Um total de onze mim homens.
         Um exército pequeno se comparado ao do império, mas os números não diziam nada, o que importava de verdade era o modo de lutar. E eu tinha certeza absoluta que os caçadotes lutavam como milhões.
         Se nos juntassemos às forças rubrienses nosso exercício seria imbatível. Mas não descartava a matança que seriam as próximas batalhas, e era nisso que minha mente trabalhava, em uma estratégia que diminuísse a taxa de baixas.
          Yara me contou que o imperador se gabava de ter matado a garota da profecia, e a caça aos Manak haviam acabado, pois o povo sabia que nas atuais condições era impossível enfrentar o império. Ele juntou um exército enorme quando tomou os outros reinos, afinal, os soldados eram obrigados a servir, e aqueles que se voltavam muito provavelmente morriam.
         Pensei na guerra que peguei com as mãos. Tudo havia acontecido por um único motivo, a resistência contra a profecia. Eu podia muito bem ter aceitado e cumprido de uma vez antes que tomassem as proporções atuais. Mas agora pessoas estavam envolvidas, inocentes morrerão, famílias irão sofrer pelas perdas, e a culpada serei eu.
         Não é para menos, tive oportunidade de evitar isso, mas decidi ir contra a profecia, com minha cabeça dura e a ignorância. Não me importaria em levar a culpa, porém, como recompensa eu os livrarei do império sombrio. Farei os inimigos perecerem.
          Vi Uriah brincar com as crianças, parecia alegre pelo menos um pouco e percebi que o garoto não ficaria impune daquela guerra, ele dificilmente me deixaria entrar numa batalha sozinha, e decidi que o treinaria.
          Não tiraria dele sua infância, mas o ensinaria como se defender do jeito certo, estaria sempre devidamente protegido por suas habilidades, de modo algum o faria aprender como matar uma pessoa, mas ferir o suficiente para poder fugir.
          Eu estava pensando como mãe, percebi, e não neguei comigo mesmo. O garoto havia sofrido muita coisa, nunca o permitiria estar em um orfanato. Ele ficaria ao meu lado, e cuidaria dele como se fosse do meu sangue, sua inocência permaneceria, a maldade não irá corrompê-lo.
         Encostei no parapeito do topo da montanha e pus-me a pensar. A única coisa que eu podia fazer naquele momento era pensar. Yara estava preparando os nossos espiões, e sabia que demorariam até recebermos notícias.
         Minha vontade era viajar eu mesma para Millandus. A saudade que sentia por Amanda não era pouca, e abraçar seu corpo e sentir seu perfume era o que mais desejava. Mas tinha que ter controle, agir por impulso não seria uma boa ideia naquele momento.
         Me surpreendi com o meu pensamento, a Rose do passado provavelmente estaria viajando direto para Millandus naquele momento, e percebi o quanto lidar com aquilo tudo havia mudado meu jeito de pensar.
         De qualquer forma, eu tinha que tirar Amanda, Marcus e Edward daquele reino, podem estar sofrendo alguma coisa, e só saberei quando estiver com o relatório da situação em minhas mãos.
          Ainda assim teria que esperar alguns dias, talvez uma ou duas semanas. Um caçador veio até mim, bateu continência e esperou minha confirmação. Fiz um aceno leve com a mão e fiquei de frente para ele, ainda encostada no parapeito.
         — Nossos espiões foram despachados — disse ele.
         — Perfeito, obrigada — sorri —, mais alguma coisa?
         Ele ficou inquieto por alguns minutos e percebi que ele queria falar alguma coisa.
         — O que foi? Pode falar — mantive um tom de voz suave e gentil.
         — Estou feliz que esteja viva, Kristallrosa, acredito na profecia e acredito em você.
        O caçador se curvou. Minhas bochechas queimaram em vergonha, era a primeira vez que escutava alguém dizer aquilo, e a citação da profecia não me incomodara pela primeira vez.
         — Que a luz não só ilumine a mim, mas nos ilumine — falei e me curvei também.
         Nunca vi um homem ficar tão alegre. O caçador abriu um sorriso surpreso e me olhou com admiração. Ele se despediu e saiu rapidamente. A sensação que tive foi boa, como se precisasse defender aquilo, a bondade nas pessoas.
        O sofrimento muda os gentis e os transformam em máquinas de matar movidas a ódio. Proteger a bondade nas pessoas é o dever de muitos, mas poucos tem a capacidade de sequer tentar lutar por isso.
        Voltei a olhar para o horizonte e imaginei o que aconteceria se eu caminhasse sozinha naquele lugar, se aquele dragão estivesse ali mesmo o que eu faria para o dominar? Precisaria dele para descer no templo subterrâneo.
          Isso se o que estava me perseguindo era o dragão de asas brancas.
          Mas que era um dragão, disso eu tenho certeza.
         Voltei para dentro quando percebi que o sol estava prestes a se esconder. Os rumores eram que os Farejadores de Medo estavam mais atrevidos, a ponto de andarem no topo da montanha corta-vento.  
          Nunca estive diante de um, mas com certeza não gostaria. Dizem que seu toque é como o da morte, se os relatos estavam certos então eu conhecia o toque da morte. E nunca mais iria querer experimentar tal sensação uma segunda vez.
          Percebi que o povo estava em silêncio, alguma coisa estava acontecendo no palco. Olhei de longe e notei que Gingar estava discutindo com um homem, provavelmente algum caçador.
         Meu coração acelerou quando vi Uriah contido atrás de Gingar que o defendia com o corpo, impedindo a aproximação do homem. Me apressei e subi no palco rapidamente, abracei o menino e sussurrei em seu ouvido que tudo ficaria bem.
        — De quem esse garoto é filho? — perguntou o caçador.
        — É meu — respondi antes que Gingar dissesse alguma coisa —, o que houve? Qual é o motivo do reboliço?
        — Seu garoto me desafiou.
        Olhei para Uriah e seus olhos indicavam que algo o havia enfurecido, mas o que?
        — Conta para mim o que houve — falei baixinho.
        — Este homem disse que você deve ser testada, não acredita que é quem diz que ser.
        Entendi o que estava acontecendo, Uriah pensara que o teste seria algo perigoso, tudo aquilo não passava de um mal entendido, porém, o homem parecia profundamente irritado.
        — O que você disse a ele? — perguntei.
        — "Que as sombras amaldiçoem sua existência e a de sua família se tocar nela".
        Era uma frase conhecida por palavras de maldição entre o povo Manak. Quando o homem ouviu novamente a frase, fulminou e veio na minha direção muito repentinamente, passando pela defesa de Gingar.
         Senti o ar ao meu redor tremeluzir e de repente o homem se chocou contra uma barreira invisível e forte. Me levantei e olhei para ele, sua expressão era de assombro, todos ali ficaram do mesmo modo.
         — Não tente mexer com algo que não conhece.
         Ergui minha mão em sua direção e o caçador foi empurrado para fora do palco de pedra. Meus braços não tinham mais escrituras, mas eu sabia que eu estava usando os poderes que herdei de minha mãe, com um controle surpreendente até para mim.
         Todos olharam em minha direção assustados, como se estivessem diante de um ser divino completo. Algo estava errado comigo, e soube pela reação de Uriah, que também parecia profundamente assustado.
           Saí do palco e corri para meu quarto, onde eu sabia que havia um espelho. O susto não foi evitado até por mim. Meus olhos brilhavam, as iris que antes eram totalmente pretas, estavam azuladas e brilhantes, tão brilhantes que eu conseguia ver a pupila e a íris com facilidade.
         Meus olhos lentamente voltaram ao normal quando senti o ar parar de tremer ao meu redor. Então é assim que meus olhos ficam quando uso os poderes. Pensei enquanto me sentava na cama e olhava para a palma de minha mão.
          Parecia que eu realmente havia me tornado um ser divino naquele momento, mal reconhecia meus próprios pensamentos e o modo que minha mente estava formando estratégias, situações e montavam palavras diferentes.
          Deitei e olhei para o teto, encarando a pedra como se fosse alguma atração. Fiquei pensando em quanto tempo a informação se espalharia, todas pessoas dali sabiam que eu estava de volta, conheciam meu poder.
          A situação estava ficando difícil, mas eu precisava realmente dormir em um lugar que tinha certeza que era seguro. Virei para o lado e dormi.
    
    
  

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