Capítulo 10


       Os ventos açoitaram meu rosto, lembrei-me de sentir uma pressão quando caminhamos dez passos no deserto. Marcus me explicou que há uma espécie de barreira invisível que protege os desertos de ataques como os contra Millandus.
       Olhei ao redor e só vi areia. Montanhas se seguiam ao longe, o céu não tinha uma nuvem sequer. Respiramos fundo e começamos a caminhar.
       Marcus seguiu a nossa frente, com passos largos, mas sem esforço, assim poderíamos poupar energia. Fiquei pensando em quais seriam os perigos daquele deserto, que parecia tão inofensivo.
        Seguimos em frente, olhando para os lados, buscando qualquer sinal do reino de Rubria. Marcus não tinha uma localização exata, apenas sabia que ficava a Oeste do deserto, porém, teríamos que chegar até o centro dele primeiro.
        De acordo com o mapa que Marcus havia me mostrado, no centro do deserto haveria um posto de vigia abandonado, onde poderíamos ficar durante a noite.
        Tínhamos um plano, o único problema era colocá-lo em prática, afinal, a teoria sempre foi fácil. Sabíamos que seria difícil em um lugar repleto de areia, com um sol escaldante.
        Olhei para Amanda que me seguia de perto, suas bochechas estavam avermelhadas. Sua pele era muito branca para estar tão exposta ao sol.
       Dei uma puxada na blusa de Marcus, fazendo ele parar. Tirei da minha bolsa uma túnica bege e enrolei em seu pescoço, cobrindo a cabeça dela, assim, ficaria protegida e não se queimaria por causa sol.
       Amanda me agradeceu com um aceno de cabeça. Voltei meu olhar para Marcus e continuamos caminhando.
        A cada vinte minutos contados por mim, eu olhava para Amanda, afim de me assegurar que ela esteja bem. Paramos apenas duas vezes desde que começamos a andar e o cansaço já me dominava quase por completo.
       Marcus fez um relógio na areia, usando o sol e um pedacinho de graveto. Ainda estava na metade do dia e teríamos que caminhar até o início do anoitecer.
     


Depois de subirmos mais uma das enormes montanhas de areia, paramos e nos sentamos para recuperar o fôlego e nos hidratar. Passei meu cantil de água para Amanda, que deu dois goles generosos.
       Tínhamos dez cantis em nossas bolsas. Algo meticuloso que fizemos para auxiliar na tarefa de carregar coisas importantes. Enquanto estávamos sentados, me lembrei de que não estava armada.
        Mexi rapidamente na minha bolsa e peguei o cinto de adagas, passando-o em minha cintura. Só assim me senti segura. Marcus me cutucou e quando olhei para ele, o vi apontando para Leste.
        Segui seu dedo e meu coração gelou. Bem longe, havia uma silhueta de algo grande, levantando uma cortina alta de poeira. Com patas na frente e duas enormes presas em formato de pinça, atrás havia uma calda comprida semelhante à de uma serpente. A criatura era do tamanho de um reino inteiro.
       — O que é aquilo? — Perguntei baixo, pois não pretendia tirar o pouco de paz que Amanda tinha.
       — É um Scors.
       — Scors?
        Marcus me explicou que estudou sobre algumas criaturas do deserto, mas que o Scors era a mais perigosa. Uma espécie de mistura entre escorpião e cobra, o Scors rastejava pelas areias do deserto em busca de viajantes, afim de se alimentar. Eram rápidos, mas pouco silenciosos.
       — Aquilo é o perigo que você me disse? — Perguntei novamente.
      — Sim, além disso temos que tomar cuidado com os Pritar.
       Minha cara deve ter transparecido minha confusão, pois Marcus explicou logo em seguida.
       — São pequenos do tamanho de um rato, tem antenas grandes e patas bem ágeis. Eles gostam do nosso sangue, e às vezes injetam um veneno potente para nos matar.
       — Tem mais alguma coisa que eu deva me preocupar?
       — Tudo neste deserto. As criaturas daqui são criadas para acabar com humanos, se eu te explicasse tudo, ficaríamos o dia todo aqui. Nosso maior problema são os Scors e Pritar.
        Assenti e me juntei a Amanda, deixando que Marcus ficasse de olho na movimentação do Scors ao longe, qualquer sinal de proximidade do animal, estaríamos mortos.
        Olhei para Amanda, seus olhos estavam sombrios e fitavam o nada, talvez o que passou tenha sido um trauma grande para ela. Alguns fios dos cabelos loiros dela esvoaçavam com o vento, a maior parte dele estava presa dentro do capuz da túnica. Mal havia percebido sua beleza até agora.
        — Tudo bem? — Fiquei de frente para ela —, precisa de alguma coisa?
       Ela negou com a cabeça.
       — Vai ficar tudo bem com nosso reino, não se preocupe.
       — Eu sei... — ela me respondeu —, apenas... fiquei pensando em como minha vida ficaria diferente se eu tivesse me defendido contra meu pai.
        Era culpa nos olhos dela, culpa de não ter revidado às violências que sofreu, assim como sua mãe.
       — Não havia nada que você pudesse fazer, Amanda. Não te culpo, eu também não saberia o que fazer — falei.
        — Eu o deixei machucar minha mãe... um dia... — Amanda me olhou, estava chorando —, ele quebrou o pulso da minha mãe... só por ela ter ido à casa de uma amiga sem avisá-lo.
       Engoli em seco e contive a vontade de voltar o caminho todo e arrebentar aquele maldito.
       — Não foi culpa sua, foi totalmente dele, e acredite, seu pai irá pagar pelo que fez — assegurei —, garanto.
        Amanda sorriu e encostou sua cabeça em mim. Eu a abracei e acariciei seu cabelo. Menti para ela a respeito do não saber o que faria em seu lugar, pois eu sabia sim, e seria algo brutal.
        Mas Amanda nunca foi esse tipo de pessoa, sua meiguice não a permitiria cometer algo brutal. Não sabia se algum dia ela teria que matar uma pessoa, se conseguiria. Desejei que não precisasse.
        Depois de alguns minutos de descanso, continuamos nossa caminhada em direção ao centro do deserto. O dia estava quente e eu mal conseguia caminhar, suor escorria das minhas têmporas e caíam na areia seca.
        Sede era o que mais sentíamos, éramos obrigados a economizar nossa água, para pelo menos sobrevivermos até o centro do deserto. Eu esperava que chegássemos rápido, pois não via a hora de dormir um pouco.
        Dormir não era algo cogitado naquele lugar aberto, os Scors podiam facilmente nos encontrar, ou até mesmo os Pritar.
        Percebi que o sol estava perto de se pôr. O céu aos poucos tornava-se alaranjado, o dia estava acabando e logo teríamos que encontrar uma maneira de descansarmos durante a noite.
        O sol desapareceu nas dunas e a noite chegou. A temperatura caiu drasticamente, nos refrescando finalmente. Nos sentamos no chão e observamos os arredores.
       Comemos pães que trouxemos dentro de nossas bolsas e ficamos ali, totalmente imóveis e em silêncio. Os Scors tinham audição apurada, qualquer barulho chamaria a atenção das criaturas.
         Suspirei e olhei para Amanda, seus olhos pareciam mais alegres, me perguntei em como sabia que ela estava triste apenas observando seus olhos, seria talvez a dádiva que minha família obteve?
       — Precisamos dormir — Marcus falou sentado ao meu lado —, mas é impossível sem nos preocuparmos com nossa ameaças.
       — Bom... os Scors nos encontrariam como?
       — Respiração irregular durante o sono — respondeu ele baixinho —, aquelas coisas malditas conseguem até ouvir nossas respirações.
       — Caramba... — murmurou Amanda.
       Os Scors parecem mais perigosos a cada minuto. Me peguei pensando na possibilidade de matar um, e como faria isso.
        — Quando chegarmos ao centro do deserto, teremos que tomar ainda mais cuidado, lá é infestado de Scors e Pritar — continuou Marcus —, espero que aquele posto de vigia ainda esteja de pé.
       Assenti. O posto de vigia era nosso único meio de seguro. De lá poderíamos ter ampla visão do horizonte. Marcus achava que seria possível ver Rubria de cima do posto.
        Passei o cantil de água para Amanda novamente. A noite esfriou bastante, e até me lembrei da temperatura de Millandus. Sentia a saudade apertar meu coração.
        Fechei os olhos e lembrei dos tremores no chão, o fogo e as pessoas desesperadas para sair de Millandus quando fomos atacados pelos Pesadelos.
        Marcus puxou meu braço e apontou para cima. Havia uma águia voando à Norte, a reconheci pelas penas esbranquiçadas, notei algo amarrado em sua pata.
       — A ave do rei... — murmurei.
        Fiquei curiosa para saber a situação atual de Millandus. Marcus me observou, quase entendendo minha preocupação.
       — A situação deve estar ruim...
       Concordei com a cabeça e me levantei, sentindo o peso das adagas na minha cintura.
       — Vamos aproveitar o frescor da noite para irmos mais rápido, talvez podemos encontrar uma caverna para ficarmos durante o sol escaldante do dia — opinei —, o que acham?
       — É uma boa ideia — concordou Amanda.
       — Sim... — Marcus se levantou — então vamos.
       Tomamos fôlego e nos apressamos para cobrir a maior área de caminhada. Marcus não sabia dizer quanto tempo ainda demoraria para chegarmos ao tão sonhado posto de vigia.
       A areia era fofa, e meus pés afundavam nela, desconfortável para andar, mas eficaz para esconder nossos rastros, afinal, ali os ventos não paravam, semelhante ao Norte da muralha.
      Imaginei se a muralha um dia cairia, e nossa terra seria contaminada pela praga, mas, como os pesadelos sobrevivem a ela? Eles talvez podem ser a chave para lidarmos com ela.
       De repente, imagens começaram a encher minha mente, trazendo consigo uma dor excruciante na cabeça.
        Caí de joelhos e tentei não gritar de dor. Minha cabeça girava. Amanda ficou ao meu lado tentando entender o que acontecia. E então fui imersa em uma visão dolorosa.
 
— Não podemos permitir que isso aconteça, sua família precisa viver — um homem moreno vestindo roubas cor bege falou.
        — Eu sei Silrur — minha voz saiu áspera demais.
        — Não parece... — ele me olhou —, você não entende o que está acontecendo Far.
        — Acha que eu não sei o que minha filha é? O que ela representa? Acha que eu não tenho conhecimento das ameaças contra ela? — Evitei transparecer a raiva em minha voz.
       — A maioria de nós já sabe, Far...
       — Imaginei... — me sentei na poltrona e massageei as têmporas —, como souberam?
       — Sinais, você sabe do que estou falando... ela curou um lobo ferido com apenas um toque, se ela não for nossa salvação, não sei mais o que vai ser.  
      — Minha filha não vai lutar na guerra — falei mantendo um tom de aviso.
      — É inevitável Far... a guerra se aproxima e você sabe muito bem disso, aqueles rebeldes continuam a aumentar, até Millandus um dia deixará de ser segura.
       — Millandus sempre será segura, só precisamos nos unir, a ordem e prevalecer Silrur.
       — A ordem se desfará, você sabe disso, o Norte está caindo aos poucos, logo os reis de lá deixarão de viver, nossos reinos cairão um dia, se sua filha não colocar em prática todas as dádivas que ganhou, morreremos, todos morrerão, essa terra definhará.
       — Quando eu morrer, não firme aliança com nenhum reino, só se a ordem prevalecer.
       — E quanto aos Azarir? Eles podem mudar de lado.
       — Eles não são nossa maior preocupação — me levantei e abri a porta —, boa viagem de volta Silrur.
       — Se cuida...
       Ele saiu e eu fechei a porta, suspirei e caí na poltrona novamente. Não conseguia parar de pensar na possibilidade da queda da ordem.
 


Recobrei os sentidos minutos depois. Minha cabeça não doía, mas pesava, como sempre tivesse algo amarrado a ela. Estávamos em uma caverna, e o sol brilhava do lado de fora a todo vapor.
        Olhei para cima e vi os cabelos loiros de Amanda, eu estava deitada em suas pernas. Procurei Marcus com os olhos e ouvi ela dizer:
       — Está lá fora, de olho na movimentação do deserto.
       — Ah... entendi — fiquei em silêncio.
       — Você está bem? Fiquei preocupada quando você desmaiou.
       — Eu desmaiei?
       — Foi assustador, seus olhos ficaram completamente brancos, e você gemia e fitava o nada.
       — Desculpe...
       — Não é culpa sua, Marcus disse que vamos ver um curandeiro assim que possível, já é a segunda vez que isso acontece.
       — É...
        Senti as mãos de Amanda passarem pelos meus cabelos escuros. Me arrepiei e olhei para ela sem evitar um sorriso.
       — Eu tinha esquecido do quão bom é isso.
       Amanda sorriu.
       Senti o vento quente entrar na caverna, imaginei por quanto tempo tinham me carregado.
       Marcus apareceu na entrada e sorriu ao me ver acordada, pensei tê-lo visto suspirar aliviado.

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