Capítulo Especial parte 3 - Coma até sumir



Nuvens começam a se formar no céu e um temporal está prestes a cair, apesar de o dia ter sido ensolarado. As pessoas costumam dormir em tendas, como se ali fosse um grande acampamento. São pessoas de diversas nacionalidades e etnias, mas boa parte delas são japonesas. Por incrível que pareça, lá há eletricidade. Lá todos parecem fazer suas próprias tarefas, vivem do plantio. A chuva começa a cair forte e eu sou levado para uma tenda maior, lá encontro um grupo de pessoas e um homem com um cobertor marrom que cobre suas costas.


O homem que me trouxe aqui diz:


- Temos um médico aqui. Senhor Neville? - Ele chama pelo homem com cobertor nas costas - Este homem está ferido.


Não consigo acreditar quando escuto esse nome - Pai?


- David, filho? - Meu pai corre para me abraçar.


Sinto-me aliviado e feliz por encontrá-lo vivo.


Os residentes da tenda batem palmas.


- Que surpresa maravilhosa - alguns dizem.


- Pai, como chegou até aqui?


- George me achou no final do rio, você foi para um lado e eu fui para outro - sim, George, o bom velho que me trouxe ao vilarejo.


- Obrigado, George. Ah, aliás, vocês conhecem Nana? Ela era daqui?


- Sim. Nana mora na tenda vizinha. Ela nunca mais voltou. Ela esteve com vocês?


- Ela ainda está. E precisamos de ajuda, pois as chances de ela estar contaminada são muito grandes. Não achei nada que possa ajudar na cura da Plaga Insane no NIAS. Aquilo está um completo caos.


- Também estava a procura de algo que possa ajudar na cura? Seu pai nos contou sobre as teorias dele e resolvemos ajudar. Por isso eu estava no NIAS também e acabei te encontrando. Nos diga onde sua família mora que iremos buscá-los. E você ficará aqui para extrair essa bala do seu ombro.


- Não sei como agradecer, George. Obrigado a todos vocês.


- Por favor, se Nana estiver realmente contaminada, preciso que tragam o corpo dela para mim - Ao ouvir essas palavras do meu pai, sinto um aperto em meu peito. Não queria ver Nana sofrer pela Plaga Insane, queria ajudá-la. Dificilmente consigo tirá-la da minha cabeça.


*


Na tenda, meu pai extrai a bala do meu ombro. A cada segundo eu ergo a garrafa de vodca e dou um gole. O suor desce pelo meu corpo e pela minha roupa ensanguentada. Eu grito de dor.


O grupo havia partido horas antes, com suas armas, mantimento e tochas para passarem pela floresta.


A agulha rasga minha pele, ela está quente. A cirurgia improvisada demorou poucas horas, e com cuidado ele enfaixa meu ombro e meu braço.


- Terminei - Eu o ouço dizer.


Meu pai me carrega. Eu estou bastante tonto. No chão há uma esteira e um cobertor esperando por mim e dali caio em sono profundo.


No dia seguinte, aparentemente eu acordo bem tarde, minha família já está alojada na tenda, tomando sopa com seus cobertores nas costas. Meus irmãos me avistam e correm para me abraçar. Minha mãe chora ao me encontrar.


- Graças a Deus. E Nana? - Eu não consigo esconder minha ansiedade.


- Está na tenda dela. Melhorando.


- Sério? - Pergunto surpreso.


- Parece que algo está bloqueando o vírus. Talvez se ela realmente for RH nulo, isso pode estar impedindo a sua proliferação, mas de certa forma, a Plaga Insane está procurando se adaptar a este tipo de ambiente. Pode estar evoluindo. Ah...E tem mais uma coisa, ela vive dizendo Coma até sumir. Acho que ela quer dizer alguma coisa e não consegue – meu pai nos conta sua observação.


- Coma até sumir é o que a mãe dela dizia antes de ser morta. Ela tinha um distúrbio raro chamado Síndrome de Leish-Nian, que fazia com que ela se mutilasse. Era comum vê-la comendo os próprios dedos. A situação se agravou com a chegada da Plaga Insane, hospitais fecharam e ela não podia mais ser internada. Nana tinha seis anos de idade, não pensei que ela fosse se lembrar. Logo, as pessoas que não eram da família, quando a encontraram se mutilando pensavam que ela estava contaminada e a levaram para uma sessão de purificação, popularmente chamado de exorcismo, mas não funcionava, então começaram uma sessão de tortura. Eles a amarraram na traseira de um carro, o motorista acelerou e ela foi arrastada por quilômetros. Perto da morte, eles a queimaram viva, dizendo que o demônio estava dentro dela - Lágrimas começam a descer pelo rosto de George.


- Desgraçados - eu penso alto.


- Onde eu morava, poucos se ajudavam para sobreviver. Ninguém confiava em ninguém, mas Nana era minha vizinha e eu não podia deixá-la sozinha sendo tão jovem. Muitos se mudaram, outros chegaram, inclusive refugiados de outros países. Nos reunimos e estamos aqui, vivendo um dia de cada vez, como podemos.


- Talvez Nana não esteja somente delirando. Talvez ela realmente queira passar uma ideia.


- Como assim, David? - Meu pai pergunta.


- Uma vez eu li em um de seus relatórios que a autodestruição é uma teoria forte para acabar com a Plaga Insane. Coma até sumir, também fala de autodestruição. Não creio que ela apenas esteja delirando. Mas de certa forma, se fizermos que uns ataquem os outros pode funcionar. Até porque não temos armamento suficiente para tentar atacá-los. Seria perda de tempo.


- Acho que poderíamos camuflar nosso cheiro neles - Meu pai arrisca uma sugestão.


Ele explica que a partir da gordura da nossa pele, é possível extrair nosso cheiro, depois basta aquecer a uma alta temperatura, transformá-lo em vapor e quebrar suas moléculas em álcool.


- E como aplicaríamos isso? É impossível - Afirma George.


- Assim como o NIAS, iremos seguir com nossa caçada aos contaminados, com nossas armas em mãos. A isca pode ser qualquer coisa - Minha mãe olha para o lado de fora da tenda e aponta para uma criança que segura uma boneca de pano - Pode ser aquela boneca, porque eu acredito que o odor impregnaria fácil no tecido. Se tivéssemos várias coisas com nosso odor, vários contaminados iriam se aproximar e aí mataríamos dois coelhos com uma cajadada só.


- Mas Susan, podem haver muitos contaminados espalhados por aí ainda. Sabemos que hoje a maioria deles são só animais - George se manifesta.


- O cheiro vai se espalhar, uma vez que terão o primeiro contato. E vai impregnar os próximos contaminados. Todos concordam com minha ideia? - Nunca senti tanta autoconfiança vindo da minha mãe.


Sons de tiro e uma gritaria vem da tenda vizinha. Todos corremos para ver o que teria acontecido. Em volta da tenda as pessoas dificultam a passagem. Lá dentro duas mulheres estão mortas e uma delas é Nana. Nana esfaqueou uma mulher e esta atirou em sua cabeça e tórax. Nana treme e muito sangue sai de sua boca. Eu entro em choque, porque realmente acreditava que ela tinha chances de ser curada. Ela morre pouco tempo depois, com os olhos arregalados.


*


O corpo da mulher é utilizado para o experimento, já Nana será lançada na fogueira. O lençol manchado com o sangue cobre a terrível imagem do cadáver e ali aguarda para ser retirado mais tarde. A chuva acaba de cessar e os moradores do vilarejo começam a amontoar galhos de árvores e folhas secas colhidas na floresta em um canto afastado das tendas. Da entrada da minha tenda eu assisto toda a movimentação e a tarde cai sombria e silenciosa. Atrás de mim, meu pai retira com dificuldades o quanto pode da pele da mulher morta, ele usa uma máscara improvisada, pois o cheiro começa a impregnar a tenda e as moscas começam a ser atraídas. Eu não aguento mais ficar lá dentro e já com o estômago embrulhado eu procuro sair e desviar meus pensamentos sórdidos. Penso em ajudar a amontoar os galhos secos, me tornar útil neste momento tão angustiante. Mas embora eu tente tirar Nana da minha cabeça, eu não consigo. Eu acreditava que ela fosse viver, maldita Plaga Insane. Ninguém poderia imaginar como eu estava me sentindo sabendo que em breve o corpo dela estaria em chamas. E fim da história? Acabou? É isso o que a Plaga Insane faz? Continua semeando sua neblina invisível e pesada, como um ser maligno e obscurecido que se alimenta aos poucos da carne e da sanidade humana.


Os homens, usando luvas e com suas camisas enroladas em seu rosto, tampando o nariz, enrolam uma corda no pé de Nana e a carregam para a pilha de madeira e folhas secas, Ali eles ateiam fogo. As chamas aumentam lentamente, tomando seu espaço por toda a pilha, o lençol começa a ser incendiado e um cheiro nada familiar em meio a fumaça é levado pelo ar. Na minha mais profunda imaginação eu vejo um sorriso demoníaco aparecendo na fumaça negra, impregnada por um odor podre, como aquele que encontramos nos restos de lixo. Esse demônio é a Plaga Insane, que sorri dos nossos maiores infortúnios. As cinzas, ainda queimando, voam por toda a parte, parecida com a neve do inverno. Meu corpo responde a um sentimento de ansiedade pelo dia em que vamos colocar o plano para pôr fim ao grande Mal do Século. Eu respiro fundo e encho o meu peito, pensando em apenas ter paciência e que o grande dia chegará.


*




FINAL


A pele retirada não foi lavada e assim foi colocada na caldeira quente fechada por uma tampa pesada, levando horas até ferver. Meu pai, como médico e cientista, conhecia o método de extração de essências, mesmo que teoricamente. Ele equipou a caldeira e montou um sistema de destilação a vapor como pôde. A caldeira tornou-se assim uma espécie de dorna, acoplada por um cano que a leva até uma panela grande onde captaria o vapor que foi levado pelo cano. A panela grande foi interligada a uma bem menor, para que o vapor fosse resfriado naturalmente e saísse em gotas, formando assim a essência. O cheiro de uma mulher foi extraído em menos de 24 horas, mas o processo é trabalhoso e demorado, sem falar que retirar pele e gordura de um cadáver era uma tarefa no mínimo desagradável. Agora só o que faltava era espalhar a essência em objetos pessoais e impregnar o local da armadilha.


Os restos do corpo da mulher foi dissecado e minha mãe simplesmente os cozinhou. Sim, os cozinhou! Não para comermos e sim para ajudar com a armadilha. O resto chamaria a atenção de qualquer animal contaminado, o cheiro humano deveria impregnar o local fazendo com que a mente deles pudesse ser confundida.


No dia seguinte, começamos a preparação da armadilha. Apenas uma criança tinha uma boneca na vila. Ela era de pano. Todos os sobreviventes viviam com muito pouco e os pais costumavam criar brinquedos para seus filhos. Eles sempre diziam que ainda esperavam que os tempos melhorassem e que voltassem a ter aquele crescimento de anos atrás quando eram crianças.


Casas maiores, veículos, computadores, máquinas por todos os lados, brinquedos incríveis, monetização, conforto. A garotinha chorou quando sua boneca foi tomada de suas mãos, sua mãe prometera lhe fazer outra.


Minha mãe pingava cuidadosamente a essência e a espalhava com a mão na boneca. A carne cozida foi espalhada em cima de um lençol, um casal cedeu suas almofadas, há tempos encontradas em uma casa abandonada. A essência líquida não durou muito e o pequeno frasco logo se acabou. Aquela estratégia seria tudo ou nada. Tudo foi preparado durante a noite, no mesmo lugar onde o corpo de Nana foi queimado. O cheiro era suave, mas ao se misturar com os restos carbonizados do local, tornou-se mais forte e enjoativo. Alguns se esconderam amedrontados em suas cabanas, outros seguravam tochas esperando pelo pior, a ainda há terceiros que tentavam colocar seus filhos para dormir, quartos acharam melhor atirar em si próprios e exterminar sua existência da face da terra e eu...não estava disposto a morrer em hipótese alguma.


O sono ia se aproximando, meus olhos começavam a ficar pesados e nada acontecia, poucos moradores já não tinham tanta disposição para esperar e aos poucos voltavam às suas tendas.


- O que estão fazendo? Não podem desistir, seus covardes! Vocês estão exterminando o pouco que sobrou da raça humana! - Meu grito saía mais forte e grosso, buscando encontrar a coragem e a esperança que neles haviam sumido.


Minha mãe coloca sua mão sob meu ombro para mostrar que me apoia e são pequenas atitudes como essa que me deixam mais forte. Minha família estava lá ao meu lado, meu pai e meus irmãos. Todos de quem eu realmente me importo. Nós iríamos defender uns aos outros e juntos não iríamos descansar até exterminar a Plaga Insane.


As horas vão passando e apenas George está ao nosso lado. Ele balança a cabeça em sentido de reprovação, ele nada diz, mas eu consigo entender que o plano foi um fracasso. Ele dá meia volta para voltar para sua tenda.


- Espere. São eles - Minha mãe o contém.


O que? Eu ouvi direito? Eles estão se aproximando, eu consigo ver algo saindo da floresta, uma sombra saindo da intensa escuridão por entre as árvores, uma criatura que se aproxima de nosso armadilha. Espere. E outra, e mais outra surgindo pelo outro canto. São lobos, com os ossos sobressalentes. Uma chuva de urubus invade o vilarejo, vindos da floresta. Nos abaixamos, meus irmãos gritam e as pessoas começam a sair de suas tendas, com olhos curiosos. Corpos são cuspidos da escuridão da floresta, um por um, pessoas em estado deplorável. Muitas se arrastavam pelo chão, sujas e magricelas. Pareciam não encontrar comida há um tempo. O som era ensurdecedor, de vários animais juntos, animais enraivecidos e desesperados. Mamíferos, aves, todos se amontoavam procurando se alimentar. A cena é tão confusa que parece haver uma competição de comida, a maioria deles começam a se amontoar e logo começam a atacar uns aos outros, raivosos e fatais. Os que vem em nossa direção, nós ameaçamos com as tochas, o que fazia com que eles voltem e ataquem as criaturas próximas a eles. Os lobos não soltam suas mandíbulas sobre as presas, os pássaros os bicam sem parar, as pessoas contaminadas capturam pássaros e comem suas cabeças. Um show de horrores cheio de sangue e tortura. Os contaminados aos poucos caíam, a luta ficava entre os mais fortes, haviam animais dilacerados por toda parte. Não tinha mais como percebermos a essência que criamos, mas certamente, eles percebiam.


O plano dava certo. Eles são realmente resistentes, pois o sol já está nascendo e eles continuam a se atacar. Muitos se mexem, mesmo sem terem força para levantar, e os contaminados pararam de aparecer, então é aí que entramos em ação.


- As tochas. Agora! - Gritei como um verdadeiro líder guerrilheiro.


As pessoas correm com suas tochas e gritam, mas não porque sentem medo e, sim porque agora a coragem os invade e a raiva transborda pela boca e pelos olhos. A raça humana não está pronta para ser extinta e os últimos deverão ser os primeiros. O fogo consome os contaminados de forma feroz, tanto que chega a atingir a floresta, que é engolida pelas chamas, árvore por árvore, apagando qualquer rastro de Plaga Insane que ali possa existir. E ficamos assistindo, o fim e o começo, no mesmo lugar.


Somente depois de 48 horas, após uma intensa chuva, o incêndio na floresta se extingui por completo, e resolvemos fazer uma busca por filhotes sobreviventes. Eu e alguns homens voltamos da floresta com, pelo menos, vinte e quatro filhotes de várias espécies. Eu carrego uma pequena raposa em meus braços, os olhos das crianças brilhavam.


- Podemos ficar com ela?


- Ainda não, crianças. Esses animaizinhos vão ser estudados pelo meu pai para sabermos se podem se tornar um risco para nós no futuro. E quando a floresta for revitalizada, eles voltarão para lá.


- Aaaaaaah - As crianças ficaram visivelmente desapontadas.


Por anos fomos subjugados a um minúsculo vírus, por anos vimos, ouvimos, sentimos e provamos a morte. Por anos, pensamos que fôssemos os últimos habitantes, sem notícias de nossos familiares ou de qualquer alma viva que estivesse em outro canto do país. Isto era a mesma coisa que pura solidão. Mas agora, somos os primeiros a habitar esta nova terra, os primeiros a falar uma única língua, os primeiros a semear a vida, conseguimos minimizar a Plaga Insane no coração de sua origem, ganhar tempo, vencer uma batalha frente a uma guerra. Já é um grande passo, e não estamos muito longe da cura. Meu pai acredita que levaria uns dois anos para descobrir oficialmente a cura.


Eu só sei que a humanidade não desiste tão fácil e que visamos o crescimento tecnológico mais uma vez. Eu pedi que ele me ensinasse o ofício da ciência e da medicina. Pretendo sempre me esforçar pelo bem do nosso povo e passar meus conhecimentos adiante.


Vamos fazer crescer, repovoar, construir escolas, faculdades, hospitais e igrejas, reestabelecer nosso sistema social e econômico e preparar as gerações futuras dos próximos 30 anos para receber o novo século. Não sabemos quanto tempo de paz ainda teremos nesses dois anos, apenas sabemos que a existência da próxima geração depende da nossa. Vamos fazer história!




FIM

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