27- Noite





Às vezes penso que a noite é uma mãe negligente que tudo permite. Talvez uma flor carnívora a atrair-me para o interior com línguas doces e telúricas, ou um felino indigente que ronrona baixinho enquanto eu lhe componho a geometria perfeita dos enganos. Ela rebola-se nas texturas mornas dos meus lençóis, entornando a escuridão que me estorva o vício de te ver até aos mais ínfimos pormenores e arqueja pelo início dos dias, em explosões verosímeis de luz. 


É na noite que arrepio caminho, papo léguas e devoro a distância que nos tem a milhas, até parecer que te toco, que a minha pele se arrepia colada à tua. É também na noite que às vezes morro e me transformo no teu fantasma feliz que te segue o invólucro por entre a bruma. 


Ainda agora te encontrei nas cordilheiras de roupas atiradas ao chão. Lá estavam os teus contornos por entres as meias desemparelhadas, que ainda se afundam na minha gaveta, como barcos naufragados. É a noite que me leva a ti por detrás das cortinas escuras. A noite que é um pano caído sobre os palcos diurnos das nossas vidas e te deixa antever o recorte da minha sombra chinesa a dançar pelas paredes do quarto. Sou gueixa que seduz o seu dana, com passos pequeninos e frágeis. Bailado de sentidos despertos nas curvas esbouceladas do meu corpo. 


Mas tu, que não conheces as melodias das pipas e dos ruans, não sabes por isso desta linguagem gestual precisa, deste amor falado através do corpo e das mãos, que me liberta dos quimonos e da tensão dos ombros. Não sabes que é na noite que me abro para ti, como se me abandonasse ao chão gélido e desenhasse anjos na neve. 


É na noite que tu, com o peso de constelações inteiras, me entras certeiro, mesmo antes de a madrugada espreitar a veneziana entreaberta e começar a impor, às minhas pálpebras cerradas, a realidade de todos os dias.



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