Único: Obrigada, e me desculpe

! contém spoiler grande da segunda temporada e novel, não leiam se não sabem ainda aaaa (e sinto que preciso esclarecer, mas não escrevi isso deles como um casal a) !




Havia cheiro de morte no ar. O desprezo e a ansiedade derramando-se dos mais de mil olhares para as duas únicas figuras vermelhas dentre todo aquele ouro das vestes caras.


Havia sangue, mas não nas mãos daqueles que seguiam para o encontro com a morte definitiva. O rubro desse sangue permanecia nas feições daqueles que tanto ansiavam a hora da execução.


Também havia tristeza, tão bem misturada à força de suas posturas que ninguém os veria fracassar naquele último momento que tinham. Principalmente no rosto daquele que não mais respirava, mas seguia andando ao lado da irmã; ele não recuaria em sua decisão, mas sentia por ela — ele não, ele já deveria estar morto há muito tempo.


No entanto, no meio de tanta desgraça, havia algo bom. Era apenas um pequeno detalhe, tão desprezível que muitos sequer deixavam passar.


E isto era o modo como a mão de Wen Qing permanecia tão fortemente agarrado à de Wen Ning.


Naquele mero aperto de mãos havia muito mais do que os outros poderiam ver, muito mais do que poderiam entender.


Toda a determinação que Wen Ning mantinha na firmeza de seus passos vinha daqueles dedos entrelaçados aos seus. Aquilo era um consolo, como se dizendo para que não temesse, que tudo ficaria bem. Era história no modo como o lembrava de todas as vezes que a Wen Qing o segurava daquele jeito, e o afastava do perigo, guiava-o pelo desconhecido e protegia-o do restante do mundo. Era um pedido de desculpas, por não tê-lo protegido até o último momento, e por tê-lo levado àquele fim tão triste e solitário; por sequer não ter sido capaz de impedir que ele morresse uma vez, e agora o levava a uma segunda morte — desta vez para sempre. Era orgulho, no modo como ele conseguira ser forte em vida ao treinar até suar, e em morte por ter se mantido firme mesmo após perceber que sequer poderia mais sorrir, pois seus músculos do rosto não mais funcionavam.


Mas, acima de tudo, era um agradecimento. Por ele ter lutado, virado um bom homem e por tê-la amado durante toda a sua vida. Por ter superado obstáculos juntos, por ter confiado nela durante anos que viveram juntos, sempre tendo apenas um ao outro para se firmarem naquele mundo tão cruel que não esperava mais do que o extermínio deles. E ela agradecia, também por ele estar segurando a mão dela tão forte no último momento, por não tê-la deixado ter uma morte solitária, por não tê-la abandonado em momento algum de sua vida, pois só Wen Qing sabia a importância que o irmão tinha em sua vida... E por ele estar agora, seguindo a passos sincronizados em direção ao pilar para, de mesmo modo como enfrentaram a vida, enfrentarem também a morte: juntos.


Para sempre juntos.


Deram os últimos passos, erguendo os olhares para aqueles que os encaravam de cima, como se nada vissem além de porcos, prestes a serem abatidos "por um bem maior". Eles estavam presos dentro de um pequeno cômodo, grades nas portas à frente e guardas os cercando.


Lá fora, a primeira voz veio naquele silêncio fúnebre. Era grossa, e anunciava ao mundo seu destino. Wen Ning sentia que era injusto um homem como aqueles, com tantas mortes em suas costas e tanto desprezo em sua história, ser aquele que ditava o final de Wen Qing.


Wen Qing. A razão de ele ter sobrevivido por tantos anos, por ter sorrido mesmo ao machucar-se tantas e tantas vezes, e por ter enfrentado seus maiores medos. Uma mulher digna, forte, que já salvara tantas vidas... morta nas mãos de um assassino desprezível.


E o homem exclamava seus motivos, seus crimes. Tudo que eles supostamente haviam feito de errado durante suas passagens na Terra, o quanto eles haviam machucado e por que eram uma ameaça a todos.


Se Wen Ning pudesse chorar, talvez ele não fosse capaz de segurar tudo dentro de si naquele momento. Se ele não já estivesse morto, talvez estivesse tremendo, rosto manchado pela tristeza e o coração agitado dentro de si.


Mas aquela mão na sua era seu porto seguro. E ele permanecia forte.


Quando chamaram o nome de Wen Qing, ela virou-se para ele. Seus cabelos estavam bagunçados, quase saindo do rabo de cavalo que prendia as madeixas teimosas. As roupas estavam meio sujas de lama e terra, e os olhos pareciam fundos, como se ela não tivesse dormido direito (ou, pior, como se ela tivesse chorado até dormir). Mas aqueles olhos negros olharam bem para o seu irmão, e um sorriso apareceu em seu rosto.


Wen Ning espantou-se com tal reação, e apertou mais forte a mão dela.


Uma mão tocou sua bochecha, e ele desejou poder sentir aquele toque.


— Wen Ning, me desculpe por tudo. Me desculpe por não ter sido forte o suficiente para te salvar. — Ela aproximou-se do rosto dele, abaixando a cabeça do rapaz e encostando seu lábio na testa exposta. Ela durou-se ali, como se não quisesse que aquele momento acabasse. E ela o abraçou, forte para não deixá-lo ir. Quando afastou-se, seus olhos eram tristes. E a mão ainda mantinha-se no rosto de Wen Ning, acariciando a pele. — Sinto muito que não pude cumprir minha promessa de protegê-lo até que estivesse velhinho, e curar suas dores até seu último suspiro. Sequer pude estar lá quando morreu uma vez, e sinto muito que terá de ver a minha morte antes de encontrar a sua. Mas, A-Ning... — Wen Qing soltou um longo suspiro, e segurou ambas as mãos do irmão agora. — Eu não fui uma irmã boa nesta vida, mas espero ser na próxima. Espero encontrá-lo novamente, e poder cumprir as promessas que te fiz, e espero te amar o tanto que não fui capaz agora. Eu te amo, e agradeço por ter ficado ao meu lado durante toda a minha vida, e também em minha morte.


Wen Ning abriu a boca, mas não pôde falar nada quando agarraram o braço dela, e a levaram para longe.


Wen Qing andou com a postura de uma rainha para o local que daria seu último adeus. Ela era forte, e não havia muito naquele mundo capaz de quebrá-la. Suas mãos foram amarradas, mas seus olhos nada viam além do triste cadáver que olhava-a com horror além das barras não tão distantes de onde estava.


Havia guardas impedindo Wen Ning de se aproximar, mas quando a primeira faísca brilhou à sua frente, ele gritou:


— Obrigado, shijie! Obrigado por tudo! — Sua voz erguia-se aos céus, bem como as chamas escalando as madeiras tão escuras. — Eu irei te esperar!


O mundo foi tomado pelo laranja e vermelho do fogo, ofuscando completamente a silhueta da pessoa que estivera ali um momento atrás. Ele foi forçado a escutar o estalar das chamas, o chiado da carne e os gritos de Wen Qing, junto aos daqueles que comemoravam sua morte.


Wen Ning ainda desejava poder chorar quando nada mais prevaleceu além do silêncio. Nenhum ruído sequer quando a platéia se calou diante do repentino vazio naquele maldito pilar. Ali, tudo que restavam eram as cinzas do que outrora fora a pessoa mais importante em sua vida.


Agora era a vez dele. Logo logo ele também iria passar por aquelas grades, e encontrar a irmã em algum outro lugar muito distante.


Pelo menos, era o que ele esperava.


Ao invés disso, uma outra pessoa passou ao seu lado. Era um homem, de estatura e cabelos semelhantes aos seus, as roupas rasgadas e um rosto tão acinzentado que ele só poderia estar igualmente morto. Ele não reagia enquanto os braços fortes dos guardas o levava para longe, deixando-se ser guiado ao atravessar as barras.


— O que... O que estão fazendo? — Ele tentou perguntar, mas os guardas o seguraram.


Wen Ning logo descobriria, ao ver aquele inocente morrer em seu lugar, que eles tinham um outro plano para ele. Que sua morte seria forjada e que ele não queimaria nas mesmas chamas que a irmã.


E ele quase fraquejou ao escutar, lá fora, as vozes fortes que tanto bradavam:


— O General Fantasma está morto!


[...]


Quando abriu os olhos mais uma vez, ele estava em um lugar escuro. As mãos estavam acorrentadas à parede, e suas pernas não pareciam firmes no chão. Os cabelos caíam em sua visão, e ele nada escutava com exceção de uma goteira insistente à sua esquerda.


Então vieram os passos, e uma risada. Uma mão afastou seus fios da frente do rosto, e Wen Ning viu o sorriso do homem à sua frente, todo trajado de preto.


Ele segurava três agulhas longas em sua mão, e parecia empolgado que Wen Ning as visse, como se estivesse orgulhoso por tê-las.


— Sinto muito que tenha visto sua irmã morrer. — Falsidade. Veneno escorria de seus lábios. — Pena que sua hora não chegou ainda, cadáver.


Ágil como um falcão, uma das mãos do homem se ergueram, e um dos pregos foi fincado em seu crânio no que parecia ser um ponto específico.


Quando perdeu a consciência mais uma vez naquele dia, a visão se tornando turva e sua voz desobedecia-o ao tentar formular frases lógicas. Uma última imagem se formou em sua mente.


Uma mulher, toda vestida de vermelho. Forte como uma guerreira, feroz como um leão. Mas, quando ela abriu a boca, sua voz era gentil.


Eu te amo, e agradeço por ter ficado ao meu lado durante toda a minha vida, e também em minha morte.


Wen Ning queria chorar... Mas ele não podia.


O tempo para Wen Qing havia acabado. Mas não para ele.


Shijie, me desculpe.


E então seu mundo se tornou preto.

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