AMANHECER


Amanhecer, mas não por completo.


Ainda ficar os olhos fechados.


E quando abrir será a primeira visão de tudo.


A despedida da cama é também o aceite da luta,


a dispensa do falso anestésico.


O dia vai durar eternidade e meia,


valerá para se exercitar todas as tentativas de diálogo e reflexão


e terminará sem qualquer sucesso.


Ó tempo de recordações sem sentido.


Um fantasma de amigo passeando comigo,


à porta do mundo.


E como é inútil recordar! Estamos presos ao futuro,


e o futuro tem um milhão de cortinas,


e só oferece o sol de cada manhã.


Aliás, o sol avisa que tudo pegou fogo,


como estava previsto.


Contudo, o meu coração ainda está bastante gelado.


Amanhece sobre a cidade.


Os homens atordoados levantam-se e vão.


E eu não tenho saída,


sou o vigia desta manhã,


o atalaia que canta com voz rouca


mas eles não ouvem.


E eu os julguei poderosos, e agora carecem


do mesmo consolo.


Tudo amanheceu com o mesmo sinal


de tristeza, e com a mesma faca cravada no peito,


e na mesma floresta densa dos pensamentos.


Em verdade ninguém nunca saberá.


O candeeiro ficou aceso,


e sobre o papel as últimas palavras ainda quentes


amanhecem.


Nesta manhã


aprendi a perdoar todos os crimes menos um.


Escondi um monte de temores


que ora me perseguiram.


Dominei os primeiros impulsos,


os golpes da vida nas mãos dos outros.


Ferozes reflexos de defesa ao invés de abraço.


São suaves as evidências de solidão,


Mais suaves ainda as prisões.


Presença minha nas ruas se projeta


disfarçada de cores.


Amanhecer, mas lentamente.


Ainda recobrar-se dos pesadelos de infância,


dos intensos e febris momentos de amor.


Lentamente devolver à vida meu personagem resoluto,


minha cara de fortaleza em frágil escudo.


E encarar o sol, e encarar o espelho,


e levantar-me e ir.


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